Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 98

98 pediu desculpa, envergonhado, não aguentei. Contei-lhe que tinha convencido o Basílio a emprestar o dinheiro que o júri pede para escolhêlo, ele ia voltar a ter o céu para voar. O Friedrich estava incrédulo. Estendi-lhe o envelope cheio de notas. Parecia uma criança a abri-lo a medo e depois a arregalar muito os olhos. Deu um grito tão grande que assustou todos os que estavam no café. Correu desenfreado para a rua, aos gritos, aos saltos, contente como nunca o tinha visto. Demorou muito até voltar. A euforia tinha passado, mas trazia ainda o envelope na mão. Em vez de me agradecer, perguntou-me porque é que eu tinha levado tanto tempo a convencer o meu primo. Fiquei sem saber o que responder. Ia dizer qualquer coisa, mas ele já estava a desaparecer para o camarim. Nunca chamo quarto ao camarim. Acho que é por ter deixado ficar as luzes à volta do espelho no toucador. Ou porque é difícil uma coisa passar a existir de uma maneira, quando durante muito tempo existiu de outra. Fui ter com ele lá dentro. Estava a tirar a minha pequena mala de viagem de cima do roupeiro, o que é que estás a fazer?, ia mudar-se para a pensão, precisava de um tempo. Não consegui dizer nada, só quando ele estava a sair, já não me amas? Truz-truz. Quarto 205. Já olhaste bem para ti? Já te viste bem ao espelho? Antes de descer à rua da estação dos caminhos-de-ferro, às ruas à volta da estação, viame ao espelho, retocava a pintura, compunha o vestido, mas os homens escolhiam sempre as outras primeiro, as que eram mais belas, as que eram mais novas. Os que iam comigo não escondiam o desagrado de me terem a mim em vez das outras. Já olhaste bem para ti? Sim, já olhei bem para mim, sim, já me vi bem ao espelho. Bem demais. Os outros são o espelho mais cruel. Tenho lá eu medo de pedaços de vidro. O Mil-folhas está lá fora, o motorista buzinou. Todos os dias pára aqui em frente, buzina, abre a porta de trás do carro, mas o Mil-folhas não sai. Deve ter medo que o fantasma da mulher ande por cá, no antigo teatrinho, por isso quer que seja eu a ir ter com ele. Vou, entro e fico sentada no outro extremo do banco, ele estende-me o anel de noivado, casa comigo, os reflexos dos diamantes parecem pirilampos tontos no lusco-fusco do carro. Não posso, sabes que não posso, mas ele não desiste, volto amanhã. E no dia seguinte traz um anel com mais diamantes. Uma vez pedi-lhe que pusesse a fábrica nova a funcionar, desde que soube do Friedrich, o Mil-folhas mantém a fábrica nova fechada, diz que não tem ânimo para a inaugurar, a promessa de que os homens e mulheres que construíram a fábrica passariam a fazer parte dela, a trabalhar nela, continua adiada. São muitos os que agora não têm emprego, os que não têm o que comer nem como alimentar os filhos, os que não têm onde dormir nem onde deitar os filhos. A miséria voltou. Já ninguém vem pedir-me nada, desde que o Basílio expulsou