98
pediu desculpa, envergonhado, não aguentei.
Contei-lhe que tinha convencido o Basílio a
emprestar o dinheiro que o júri pede para escolhêlo,
ele ia voltar a ter o céu para voar. O Friedrich
estava incrédulo. Estendi-lhe o envelope cheio de
notas. Parecia uma criança a abri-lo a medo e
depois a arregalar muito os olhos. Deu um grito tão
grande que assustou todos os que estavam no café.
Correu desenfreado para a rua, aos gritos, aos
saltos, contente como nunca o tinha visto.
Demorou muito até voltar. A euforia tinha passado,
mas trazia ainda o envelope na mão. Em vez de me
agradecer, perguntou-me porque é que eu tinha
levado tanto tempo a convencer o meu primo.
Fiquei sem saber o que responder. Ia dizer
qualquer coisa, mas ele já estava a desaparecer
para o camarim. Nunca chamo quarto ao camarim.
Acho que é por ter deixado ficar as luzes à volta do
espelho no toucador. Ou porque é difícil uma coisa
passar a existir de uma maneira, quando durante
muito tempo existiu de outra. Fui ter com ele lá
dentro. Estava a tirar a minha pequena mala de
viagem de cima do roupeiro, o que é que estás a
fazer?, ia mudar-se para a pensão, precisava de um
tempo. Não consegui dizer nada, só quando ele
estava a sair, já não me amas? Truz-truz. Quarto
205. Já olhaste bem para ti? Já te viste bem ao
espelho? Antes de descer à rua da estação dos
caminhos-de-ferro, às ruas à volta da estação, viame
ao espelho, retocava a pintura, compunha o
vestido, mas os homens escolhiam sempre
as outras primeiro, as que eram mais belas, as que
eram mais novas. Os que iam comigo não
escondiam o desagrado de me terem a mim em vez
das outras. Já olhaste bem para ti? Sim, já olhei
bem para mim, sim, já me vi bem ao espelho. Bem
demais. Os outros são o espelho mais cruel. Tenho
lá eu medo de pedaços de vidro.
O Mil-folhas está lá fora, o motorista buzinou.
Todos os dias pára aqui em frente, buzina, abre a
porta de trás do carro, mas o Mil-folhas não sai.
Deve ter medo que o fantasma da mulher ande por
cá, no antigo teatrinho, por isso quer que seja eu a
ir ter com ele. Vou, entro e fico sentada no outro
extremo do banco, ele estende-me o anel de
noivado, casa comigo, os reflexos dos diamantes
parecem pirilampos tontos no lusco-fusco do carro.
Não posso, sabes que não posso, mas ele não
desiste, volto amanhã. E no dia seguinte traz um
anel com mais diamantes. Uma vez pedi-lhe que
pusesse a fábrica nova a funcionar, desde que
soube do Friedrich, o Mil-folhas mantém a fábrica
nova fechada, diz que não tem ânimo para a
inaugurar, a promessa de que os homens e
mulheres que construíram a fábrica passariam a
fazer parte dela, a trabalhar nela, continua adiada.
São muitos os que agora não têm emprego, os que
não têm o que comer nem como alimentar os
filhos, os que não têm onde dormir nem onde
deitar os filhos. A miséria voltou. Já ninguém vem
pedir-me nada, desde que o Basílio expulsou