os sem-abrigo ninguém se atreve a pedir-me seja o
que for, mas a miséria voltou. Todos os dias antes
do nascer do sol preparo panelões de comida que
vou deixar junto da oliveira, por mais panelões que
prepare ficam sempre vazios antes de anoitecer.
Era bom pores a fábrica a funcionar, insisti ao ver o
Mil-folhas calado. Bom?, para que serve ser bom?,
acabou por responder. Truz-truz. Sim, para que
serve sermos bons se não nos amam?
Há dias o Canivetes chegou com a notícia de que as
máquinas que o Mil-folhas mantém paradas na
fábrica nova, uma fábrica enorme, gigante, afinal
não fazem bolos. Fazem balas. Não se pode confiar
no que o Canivetes diz, mas… Balas em vez de
bolos. Se as máquinas na fábrica nova começarem
a funcionar, os miseráveis daqui passarão a ter
emprego, farão as balas com que os miseráveis do
norte serão mortos, talvez até as balas com que
eles próprios serão mortos quando a guerra
alastrar aqui abaixo e eles engrossarem as fileiras
dos miseráveis revoltosos. O motorista do Milfolhas
voltou a buzinar, não vou aparecer, hoje não
vou aparecer, vou deixar-me ficar fechada aqui
dentro. Sinto-o rondar lá fora, vejo-lhe o vulto nas
janelas, tenta espreitar, devem estranhar o café
fechado e os papéis que pus a tapar os vidros.
Daqui a nada cansam-se e vão-se embora.
Amanhã de manhã o Friedrich entrega o dinheiro
ao júri que o vai escolher para a vaga da Força
Aérea e parte para o norte. Estava a fazer a mala
quando fui ter com ele ainda há pouco. Quarto 205,
o que é que estás aqui a fazer? Também tenho tudo
pronto para partir. Cobri as mesas, as cadeiras, o
balcão, as coisas todas com lençóis. Ia segui-lo.
Sem que ele soubesse. Só aparecia quando ele já
estivesse no norte. Nessa altura o Friedrich ficava
contente, é bom não estar só. Mas agora tenho a
Ana, temos a Ana. A Ana muda tudo, o Friedrich
precisava de saber, podia acontecer até que já não
quisesse ir embora. O que é que eu tenho a ver
com isso?, disse ele, isso não é problema meu. Não
queria saber da Ana, mas o que o enfureceu foi
perceber que eu tinha tudo preparado para ir atrás
dele, estás louca?, só podes estar louca. Foi então
que começou a dizer disparates. Já te viste bem ao
espelho? Assustou-se. De certeza que se assustou,
foi isso.
É, é bom não estar só. Dona Anica, como está?,
passou bem?, chuác, chuác. Tinha acabado de
arrumar tudo, sentei-me numa das cadeiras. Estava
exausta, pronta para partir, mas exausta. Nada que
uma noite de sono não resolvesse. Pousei a cabeça
sobre a mesa e adormeci. Os três deuses
aproximaram-se pé ante pé. O primeiro encostou o
ouvido às minhas costas que subiam e desciam
ritmadas. Está a dormir, disse. O segundo
aproximou muito a cara dele da minha e ficou a ver
os meus olhos a mexerem por baixo das pálpebras
fechadas. Está a fingir que dorme, disse.
99