Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 99

os sem-abrigo ninguém se atreve a pedir-me seja o que for, mas a miséria voltou. Todos os dias antes do nascer do sol preparo panelões de comida que vou deixar junto da oliveira, por mais panelões que prepare ficam sempre vazios antes de anoitecer. Era bom pores a fábrica a funcionar, insisti ao ver o Mil-folhas calado. Bom?, para que serve ser bom?, acabou por responder. Truz-truz. Sim, para que serve sermos bons se não nos amam? Há dias o Canivetes chegou com a notícia de que as máquinas que o Mil-folhas mantém paradas na fábrica nova, uma fábrica enorme, gigante, afinal não fazem bolos. Fazem balas. Não se pode confiar no que o Canivetes diz, mas… Balas em vez de bolos. Se as máquinas na fábrica nova começarem a funcionar, os miseráveis daqui passarão a ter emprego, farão as balas com que os miseráveis do norte serão mortos, talvez até as balas com que eles próprios serão mortos quando a guerra alastrar aqui abaixo e eles engrossarem as fileiras dos miseráveis revoltosos. O motorista do Milfolhas voltou a buzinar, não vou aparecer, hoje não vou aparecer, vou deixar-me ficar fechada aqui dentro. Sinto-o rondar lá fora, vejo-lhe o vulto nas janelas, tenta espreitar, devem estranhar o café fechado e os papéis que pus a tapar os vidros. Daqui a nada cansam-se e vão-se embora. Amanhã de manhã o Friedrich entrega o dinheiro ao júri que o vai escolher para a vaga da Força Aérea e parte para o norte. Estava a fazer a mala quando fui ter com ele ainda há pouco. Quarto 205, o que é que estás aqui a fazer? Também tenho tudo pronto para partir. Cobri as mesas, as cadeiras, o balcão, as coisas todas com lençóis. Ia segui-lo. Sem que ele soubesse. Só aparecia quando ele já estivesse no norte. Nessa altura o Friedrich ficava contente, é bom não estar só. Mas agora tenho a Ana, temos a Ana. A Ana muda tudo, o Friedrich precisava de saber, podia acontecer até que já não quisesse ir embora. O que é que eu tenho a ver com isso?, disse ele, isso não é problema meu. Não queria saber da Ana, mas o que o enfureceu foi perceber que eu tinha tudo preparado para ir atrás dele, estás louca?, só podes estar louca. Foi então que começou a dizer disparates. Já te viste bem ao espelho? Assustou-se. De certeza que se assustou, foi isso. É, é bom não estar só. Dona Anica, como está?, passou bem?, chuác, chuác. Tinha acabado de arrumar tudo, sentei-me numa das cadeiras. Estava exausta, pronta para partir, mas exausta. Nada que uma noite de sono não resolvesse. Pousei a cabeça sobre a mesa e adormeci. Os três deuses aproximaram-se pé ante pé. O primeiro encostou o ouvido às minhas costas que subiam e desciam ritmadas. Está a dormir, disse. O segundo aproximou muito a cara dele da minha e ficou a ver os meus olhos a mexerem por baixo das pálpebras fechadas. Está a fingir que dorme, disse. 99