Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 90

90 nome de família para se ser escolhido. O Friedrich não tinha uma coisa nem outra. Acendeu uma fogueira e despimo-nos, deixámos a roupa a secar em cima de uns galhos e rastejámos para dentro da tenda. Quando o corpo dele entrou no meu, já nada mais havia em mim que não lhe pertencesse. Ligada, sinto-me ligada. Como uma lâmpada. Adormeci nos braços dele. Ouvi um barulho lá fora, fiquei com medo que fosse algum animal selvagem, espreitei por uma fenda da lona. Três vultos montavam uma tenda ali perto. Os três deuses, sem dúvida. Consegui ouvir o que diziam. Percebi que falavam de mim. É bom amar alguém, disse o primeiro deus, ela vai ser ainda melhor. Bom é ser amado, ela pode ficar bem pior, disse o segundo deus. O amor cega, vai ficar sem ver mais nada, disse o terceiro deus, até a nós vai deixar de ver. Isso não, disse o primeiro deus, porque não?, disse o segundo deus, como não?, disse o terceiro deus. Acordei com o sol a bater na tenda e o Friedrich aninhado nos meus braços. Os deuses já tinham desmontado a tenda deles e partido. Agora a sombra nos olhos. Sei pintar-me bem. As sombras no sítio certo, os olhos iluminam-se. Um lápis marca os contornos, outro desenha melhor os lábios. Compor o trabalho apressado dos deuses. E o que o tempo estragou. Nunca estou parecida comigo. No espelho nunca estou. Ainda estávamos nus. Amo-te, disse eu. O amor é um luxo quando a barriga e os sonhos passam fome, resmungou o Friedrich. Mas prometeu que vinha aqui ter. E que não voltava a subir para o muro da ponte. Roubei-o às águas, é meu. E eu dele. Ligada. Sinto-me ligada. Como uma lâmpada. 5. Basílio O corpo dorido, a cabeça a mil. Sabe bem estar assim, outra vez no chão, todo deitado no chão, a sentir o fresco dos mosaicos e o relevo das raízes por baixo de mim. São as raízes da oliveira, os altos e baixos, em certos sítios rebentaram o betão e uma corda grossa espreita, carnuda e húmida. Estendem-se por todo o lado, avançam devagarinho, devagarinho, à procura de água, sem descanso, se for preciso rebentam canos, entram nas casas. Lá fora, no terreiro, a oliveira é mirrada e velhinha mas aqui dentro, aqui por baixo, as raízes são fortes, cheias de vida. O Canivetes diz que é a oliveira mais antiga do mundo, que os homens que andaram de volta dela há dias vão provar que tem três mil anos, talvez mais, as oliveiras duram muito tempo. Mas não se pode confiar no que o Canivetes diz, há quem receie que os homens tenham vindo ver a oliveira para a mandar abater. Se for isso, o que será que acontece às raízes?, para que é que vão continuar à procura de água se já não houver tronco? E se as raízes também morrerem, como é que fica o chão?, não endireita de certeza.