Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 91

Nessa altura os altos e baixos não servem para nada. Não era suposto voltar mas aqui estou. Quem é vivo sempre aparece. Sou o Basílio, o primo da Mónica, lembra-se de mim? Tudo porque a Mónica está apaixonada pelo Friedrich. Quando amamos às vezes temos de deixar de ser quem somos para podermos cuidar melhor do nosso amor. Era preciso arranjar tudo. Com a senhoria, que foi para isso que vim, mas também com o Friedrich. O corpo dorido, a cabeça a mil. Turbulento. Estou turbu-lento. Não é mau estar assim. Não, não é mesmo nada mau. Vou deixar-me ficar. Turbo. Lento. Turbo. Lento. Foi bom estar aqui quando o Friedrich apareceu. Corpo a corpo, ele e eu no chão, deixou-me todo dorido. Também ficou, de certeza. Corpo e cabeça doridos. Mais a cabeça até, aposto. Agora é que a Mónica ainda vai demorar. Que isto deve ser como com os atores, precisam de um tempo para entrar na personagem. A Mónica também precisa de um tempo para entrar em mim. Só que da primeira vez foi bem mais rápido voltar a ela, sair de mim. Sair de mim ou entrar eu nela. É confuso. Sou o Basílio, o primo da Mónica, lembra-se de mim? Claro que a senhoria se lembrava, parecia uma gata velha a ronronar. Ficou satisfeita por me ver, percebi bem que ficou. Tinha de ser eu a lidar com ela, a Mónica não ia conseguir nada, a senhoria já não tem motivo nenhum para ceder ao que quer que seja que a Mónica peça. Muito pelo contrário. O Mil-folhas anda triste e toda a gente sabe porquê. Agradar ao Mil-folhas, o que a senhoria julga que é agradar ao Mil-folhas, significa contrariar a Mónica. A senhoria ia recusar tudo o que a minha prima pedisse. A própria Mónica foi apanhada de surpresa. Se soubesse que ia conhecer o Friedrich e apaixonarse por ele, tinha posto no contrato que podia trespassar o café sem autorização da senhoria. Mas como é que lhe podia passar pela cabeça que um dia ia considerar sair daqui?, a Mónica criou isto, pertence aqui. Talvez deixemos de pertencer-nos quando amamos, talvez tenhamos de nos entregar, de nos deixar levar. A Mónica quer deixar-se levar, ama o Friedrich, o aviador que não voa, quer deixar-se levar para o norte onde ele vai poder voltar a voar, quer fazê-lo feliz, dar-lhe tudo o que o faça feliz. Desde que conheceu a Mónica, o Friedrich passou a vir para o bairro, vem quase sempre comer ao café. Comer e beber. Também dorme aqui a maior parte das noites, a cama ali dentro é bem melhor do que a esteira na tenda pequenina que tem montada na mata da outra margem do rio. Durante o resto do dia e nas noites que aqui não vem, anda não se 91