Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 87

calcular o tempo que demoraria até atingir a água, tentava adivinhar se iria sentir o embate ou se perderia os sentidos antes disso. De qualquer maneira, morreria. Consciente ou inconsciente, morreria. Não faça isso, gritei. Larguei o chapéu-dechuva e corri. Antes que ele pudesse fazer o que quer que seja, estava agarrada a uma das pernas dele, não o deixo. Sacudiu-me com maus modos, queria que eu fosse embora, que o deixasse em paz, abracei-me com mais força, se se atirar arrastame consigo. Percebeu que não ia desistir, que não o ia soltar. Desceu furioso do muro, não se importava comigo nem com o que me acontecesse, mas não era capaz de saltar com uma imbecil aos gritos à volta dele. Ficámos frente a frente. Era belo. Como era belo o homem que salvei. Estava zangado, muito zangado. Pedi-lhe baixinho que não se atirasse, não queria que ele morresse, riu-se muito alto, disse que eu era ridícula. E ainda por cima feia. Não sou feia. Posso não ser bonita, sei que não sou bonita como ele é, mas também não sou feia. O Mil-folhas diz que sou a mulher mais linda que ele viu. Sei que também não é verdade. Ou talvez seja, talvez ele olhe para mim e veja a mulher com quem casou, é fácil enganarmo-nos sobre os outros, talvez se confunda por ver-me aqui, no antigo teatrinho onde ela atuava, o teatrinho onde um dia uma bala que devia ser a fingir atravessou a sério a cabeça da mulher do Mil-folhas. O que era o camarim é agora este meu quarto, tirando a cama que trouxe para aqui, está quase tudo como era, aproveitei o que havia, compus tudo como pude, a chaise-longue, o roupeiro, as lâmpadas à volta do espelho do toucador. O espelho em que a mulher do Mil-folhas se viu nesse último dia vê-me agora a mim. Eu não sou ela, eu sou só eu. Mas não sou feia. E sei pôr-me bonita. Vou pintar-me, vou pôr-me bonita. Imbecil, ridícula e feia. Tinha ido sentar-se no chão contra o muro da ponte, indiferente à chuva e a tudo o mais, mas continuava a insultar-me. Afasteime. Quando me afastei, levantou a voz e gritou, até que enfim que te vais embora, deve ter pensado que o deixava, com certeza ficou com medo que o deixasse. Apanhei o chapéu-de-chuva que estava caído no chão onde o tinha largado, quase metade das varetas estavam partidas, de pouco ou nada servia assim todo desengonçado, não se pode confiar no que o Canivetes diz, muito menos no que ele faz, consertou o chapéu-de-chuva mas nem uma semana durou. Ainda não se tinha calado quando voltei e me sentei no chão colada a ele, o chapéu-de-chuva a tentar cobrir-nos. Tens tudo torto, não fazes nada de jeito, disse ele, tentava magoar-me de todas as maneiras. Não me importava, a voz dele, o ritmo do peito, o cheiro da pele molhada, tudo parecia mágico, se me tivesse atrasado ou adiantado um minuto, dois, podia estar ali, na mesma, a meio da ponte, eu podia estar ali 87