calcular o tempo que demoraria até atingir a água,
tentava adivinhar se iria sentir o embate ou se
perderia os sentidos antes disso. De qualquer
maneira, morreria. Consciente ou inconsciente,
morreria. Não faça isso, gritei. Larguei o chapéu-dechuva
e corri. Antes que ele pudesse fazer o que
quer que seja, estava agarrada a uma das pernas
dele, não o deixo. Sacudiu-me com maus modos,
queria que eu fosse embora, que o deixasse em
paz, abracei-me com mais força, se se atirar arrastame
consigo. Percebeu que não ia desistir, que não o
ia soltar. Desceu furioso do muro, não se importava
comigo nem com o que me acontecesse, mas não
era capaz de saltar com uma imbecil aos gritos à
volta dele. Ficámos frente a frente. Era belo. Como
era belo o homem que salvei. Estava zangado,
muito zangado. Pedi-lhe baixinho que não se
atirasse, não queria que ele morresse, riu-se muito
alto, disse que eu era ridícula. E ainda por cima
feia.
Não sou feia. Posso não ser bonita, sei que não sou
bonita como ele é, mas também não sou feia. O
Mil-folhas diz que sou a mulher mais linda que ele
viu. Sei que também não é verdade. Ou talvez seja,
talvez ele olhe para mim e veja a mulher com quem
casou, é fácil enganarmo-nos sobre os outros,
talvez se confunda por ver-me aqui, no antigo
teatrinho onde ela atuava, o teatrinho onde um dia
uma bala que devia ser a fingir atravessou a sério a
cabeça da mulher do Mil-folhas.
O que era o camarim é agora este meu quarto,
tirando a cama que trouxe para aqui, está quase
tudo como era, aproveitei o que havia, compus
tudo como pude, a chaise-longue, o roupeiro, as
lâmpadas à volta do espelho do toucador. O
espelho em que a mulher do Mil-folhas se viu
nesse último dia vê-me agora a mim. Eu não sou
ela, eu sou só eu. Mas não sou feia. E sei pôr-me
bonita. Vou pintar-me, vou pôr-me bonita.
Imbecil, ridícula e feia. Tinha ido sentar-se no chão
contra o muro da ponte, indiferente à chuva e a
tudo o mais, mas continuava a insultar-me. Afasteime.
Quando me afastei, levantou a voz e gritou, até
que enfim que te vais embora, deve ter pensado
que o deixava, com certeza ficou com medo que o
deixasse. Apanhei o chapéu-de-chuva que estava
caído no chão onde o tinha largado, quase metade
das varetas estavam partidas, de pouco ou nada
servia assim todo desengonçado, não se pode
confiar no que o Canivetes diz, muito menos no
que ele faz, consertou o chapéu-de-chuva mas nem
uma semana durou. Ainda não se tinha calado
quando voltei e me sentei no chão colada a ele, o
chapéu-de-chuva a tentar cobrir-nos. Tens tudo
torto, não fazes nada de jeito, disse ele, tentava
magoar-me de todas as maneiras. Não me
importava, a voz dele, o ritmo do peito, o cheiro da
pele molhada, tudo parecia mágico, se me tivesse
atrasado ou adiantado um minuto, dois, podia estar
ali, na mesma, a meio da ponte, eu podia estar ali
87