Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 86

86 Mesmo os outros, os que já trabalhavam na fábrica de bolos e as famílias deles também estão melhor, mais satisfeitos. Até a muda que quando me trouxe até aqui era tão magrinha, está roliça, com bom aspeto. Passa muitas vezes por cá, sinto os olhos dela fixos em mim como da primeira vez, volto-me e vejo-a no terreiro. Fica lá fora como um bichinho, sem fazer nada ou então a rabiscar os desenhos dela. Nunca entra, mas já não foge se me aproximo. Ainda há pouco a vi, sentada no chão, debaixo da oliveira, aproximei-me e deixou-me ficar ao lado dela enquanto fazia mais um desenho, uma cruz onde pendurou uma bola a fazer de cabeça e uns traços a fazerem de pernas e braços, depois uma bola grande a toda a volta e outra vez a mesma coisa, cabeça, pernas e braços. Olhou para mim, sorri, está muito bonito, disse, mas tive de vir-me logo embora, tinha clientes para atender. O café também está a funcionar como deve ser. Desde que a senhoria percebeu que o Mil-folhas gosta de mim desistiu do aumento de renda, desistiu de exigirme o pagamento de um ano em avanço, nem meio, nem caução, nem nada, aceita a renda mês a mês, mostra-se agradecida e simpática, como se o meu passado já não a incomodasse ou como se se tivesse esquecido dele. Faz isso por causa do Milfolhas, para agradar-lhe, eu sei, mas também não tem mal que seja assim, o importante é que estou a tratar bem do dinheiro que os três deuses me deram. Queria que os três deuses soubessem. Tinha de encontrá-los e dizer-lhes isso. Também vou ter de contar ao Mil-folhas o que aconteceu. Da sala grande da casa dele, o último andar do prédio dos ricos, avista-se a ponte, mas dali só muito a custo alguém consegue ver um homem de pé sobre o muro, prestes a atirar-se. Da margem, sim, mesmo com a chuva que ontem caía e estando ainda longe do sítio em que a ponte se despega da terra, distingui-o perfeitamente. Vou ter de contar ao Mil-folhas. O Mil-folhas gosta de me ter em casa dele, diz que me ama e está sempre a tentar que eu diga que também o amo, perguntame “e tu, Mónica, amas-me?”, respondo que não sei e ele fica triste. Não se deve mentir, mas fico tentada a mentir. Se mentir ele fica feliz. Afinal qual é o mal de mentir?, é bom fazer os outros felizes. Acabo por mentir um bocadinho, ele insiste “nãosabes-mais-para-o-sim ou não-sabes-mais-para-onão?”, eu respondo que não-sei-mais-para-o-sim, apesar de que não-sei-mais-para-o-não. E pensava, como é que se pode ter a certeza do que é o amor? Para mim, o amor seria quando quisesse beijar um homem, eu não era capaz de beijar os homens da rua da estação dos caminhos-de-ferro, das ruas à volta da estação. Quando o Mil-folhas me beija não me importo, mas mesmo assim nunca lhe disse “sim, amo-te”. Devia achar que seria como quando cheguei aqui, quando acontecesse reconheceria. A chuva não deixava ver as coisas como elas são, mas mais uns passos e não havia dúvida: um homem. Devia estar a medir a altura até ao rio, a