Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 76

76 maneira. Até que as encontramos e reconhecemos. É aqui. É aqui que pertenço. Pousei a mala de viagem no chão, cheguei. Havia velhos e crianças à janela, sentados também cá fora em cadeiras que tinham trazido das salas de jantar ou das cozinhas, gente pobre. Estranhavam que alguém de fora tivesse vindo aqui ter. E mais ainda que se demorasse por cá. Mas não me faziam mal, muito pelo contrário, sorriam mesmo sem saberem quem eu era, mesmo sem saberem do dinheiro que os três deuses me deram e que eu trazia colado ao corpo. De dentro das casas iam aparecendo mais e mais velhos e crianças. Os outros, os pais e mães das crianças, os filhos e filhas dos velhos, só apareceram depois, ao fim da tarde, quando o apito da fábrica soou. Trabalham todos na fábrica de bolos. Contaram-me então que o dono da fábrica é o Mil-folhas, o homem mais rico do bairro, e não só deste bairro, o homem mais rico de muitos bairros para além deste. É um senhor gordo que vive no último andar do prédio dos ricos, ele próprio mandou construi-lo junto ao rio que agora já não se avista daqui. Os trabalhadores chegaram aos magotes, também eles estranharam ver-me, estranharam que estivesse interessada na casa emparedada, uma casa que afinal não é bem uma casa, durante muito tempo neste rés-do-chão funcionou um teatrinho, representaram-se aqui muitas peças, a sala enchiase nos dias de espetáculos. A mulher do Mil-folhas, uma rapariga nova e muito bela, era uma das atrizes mais queridas da companhia. Quando ela morreu, o Mil-folhas mandou fechar o teatro. Mas ninguém o critica por isso, era difícil o teatro continuar a funcionar depois do que aconteceu. Uns dizem que a mulher do Mil-folhas se suicidou, outros que foi assassinada, mas todos concordam que o culpado é o Mil-folhas. Os que dizem que foi assassinada não têm dúvidas de que foi uma vingança para com o Mil-folhas, ainda que não se entendam sobre quem a matou, se um trabalhador pobre ou um rival rico. A polícia não conseguiu apurar o que aconteceu, mas não pode ter sido acidente, no teatro tudo é a fingir. Só que, no palco, no dia do último espetáculo, quando a arma foi encostada à cabeça da mulher do Mil-folhas, havia uma bala verdadeira, uma bala verdadeira que devia ser a fingir. Na peça, a mulher do Mil-folhas representava um jovem camarada que no final é morto pelos colegas, uma peça chamada “Decisão” ou qualquer coisa assim. Ainda havia sangue por aqui quando comecei a arranjar tudo. Não fiquei assustada, não sei explicar. Abri um buraco numa das janelas emparedadas e entrei. As coisas do teatro misturavam-se com restos das pessoas que por aqui tinham passado. Não havia dúvida, tinha chegado. Este era o meu sítio, este é o meu sítio. Mesmo dormindo no chão preferi passar a ficar aqui. Ia arranjar tudo .