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maneira. Até que as encontramos e reconhecemos.
É aqui. É aqui que pertenço. Pousei a mala de
viagem no chão, cheguei.
Havia velhos e crianças à janela, sentados também
cá fora em cadeiras que tinham trazido das salas de
jantar ou das cozinhas, gente pobre. Estranhavam
que alguém de fora tivesse vindo aqui ter. E mais
ainda que se demorasse por cá. Mas não me faziam
mal, muito pelo contrário, sorriam mesmo sem
saberem quem eu era, mesmo sem saberem do
dinheiro que os três deuses me deram e que eu
trazia colado ao corpo. De dentro das casas iam
aparecendo mais e mais velhos e crianças. Os
outros, os pais e mães das crianças, os filhos e
filhas dos velhos, só apareceram depois, ao fim da
tarde, quando o apito da fábrica soou. Trabalham
todos na fábrica de bolos. Contaram-me então que
o dono da fábrica é o Mil-folhas, o homem mais
rico do bairro, e não só deste bairro, o homem mais
rico de muitos bairros para além deste. É um
senhor gordo que vive no último andar do prédio
dos ricos, ele próprio mandou construi-lo junto ao
rio que agora já não se avista daqui. Os
trabalhadores chegaram aos magotes, também eles
estranharam ver-me, estranharam que estivesse
interessada na casa emparedada, uma casa que
afinal não é bem uma casa, durante muito tempo
neste rés-do-chão funcionou um teatrinho,
representaram-se aqui muitas peças, a sala enchiase
nos dias de espetáculos.
A mulher do Mil-folhas, uma rapariga nova e muito
bela, era uma das atrizes mais queridas da
companhia. Quando ela morreu, o Mil-folhas
mandou fechar o teatro. Mas ninguém o critica por
isso, era difícil o teatro continuar a funcionar
depois do que aconteceu. Uns dizem que a mulher
do Mil-folhas se suicidou, outros que foi
assassinada, mas todos concordam que o culpado é
o Mil-folhas. Os que dizem que foi assassinada não
têm dúvidas de que foi uma vingança para com o
Mil-folhas, ainda que não se entendam sobre quem
a matou, se um trabalhador pobre ou um rival rico.
A polícia não conseguiu apurar o que aconteceu,
mas não pode ter sido acidente, no teatro tudo é a
fingir. Só que, no palco, no dia do último
espetáculo, quando a arma foi encostada à cabeça
da mulher do Mil-folhas, havia uma bala
verdadeira, uma bala verdadeira que devia ser a
fingir. Na peça, a mulher do Mil-folhas
representava um jovem camarada que no final é
morto pelos colegas, uma peça chamada “Decisão”
ou qualquer coisa assim. Ainda havia sangue por
aqui quando comecei a arranjar tudo. Não fiquei
assustada, não sei explicar.
Abri um buraco numa das janelas emparedadas e
entrei. As coisas do teatro misturavam-se com
restos das pessoas que por aqui tinham passado.
Não havia dúvida, tinha chegado. Este era o meu
sítio, este é o meu sítio. Mesmo dormindo no chão
preferi passar a ficar aqui. Ia arranjar tudo .