depressa, num instante o meu cafezinho ia ficar
pronto.
Desculpem. Desculpem, com licença. Com licença.
Obrigada. Este barulho lá fora. Desculpem.
A senhoria já tinha desistido de arrendar o espaço,
ficou contente quando soube que eu estava
interessada, fez-me um preço em conta e tudo,
nada era pior do que ter isto abandonado. Também
vive no prédio dos ricos, mas não no último andar
como o Mil-folhas. Ele não se importou que eu
tenha vindo para o antigo teatrinho. Parece até
gostar. Trata-me bem, ofereceu-se para fazer um
desconto no fornecimento dos bolos sem que lhe
tivesse pedido nada.
O barulho não pára. Com licença, posso? Obrigada.
Desculpem. Com licença. Porque é que o barulho
não pára? Nas noites de tempestade o mar é
ensurdecedor, mas não há mar lá fora. Só o rio por
detrás do prédio dos ricos. Também já não há
aplausos dos espectadores, o teatrinho fechou há
muito. O barulho é cada vez maior.
Logo no primeiro dia, improvisei ali ao fundo um
sítio onde dormir. Quando me deitei, fiquei a ver o
céu através do buraco por onde tinha entrado, o
buraco aberto nos tijolos que emparedavam uma
das janelas. Parecia um cenário. As noites ainda
não estavam frias como agora, sabia bem o vento
fresco com o cheiro do rio. Adormeci em paz como
nunca tinha adormecido. Pouco depois os três
deuses apareceram, não fizeram barulho, tal e qual
como da outra vez. Chegaram separados, mas
reconheci-os. Aninharam-se cada um no seu canto.
Apesar de falarem baixinho para si mesmos,
conseguia ouvi-los. O primeiro deus estava a
passar por aqui quando viu o buraco aberto e
entrou, estava contente com o que eu tinha feito,
eu queria agradecer-lhe o dinheiro que me deram,
mas antes que pudesse dizer qualquer coisa ele
pôs-se a ressonar. O segundo deus criticou-me por
eu estar a dormir no melhor sítio, achava que isso
não prometia nada de bom, ofereci-me para
trocarmos de lugar, não sabia que eles vinham, não
me respondeu e pôs-se a ressonar também. O
terceiro deus achou que era cedo para se saber
como é que as coisas iam ficar por aqui e se valiam
a pena, prometi que ia arranjar tudo para poder
ajudar os outros, que me ia esforçar por não os
desiludir. Também ele se pôs a ressonar. Quando
acordei, vi o volume dos corpos recortados na luz.
Estava contente por ter os deuses aqui, comigo. Ia
esperar que acordassem e agradecer-lhes.
Levantei-me, pé ante pé. Havia um cheiro esquisito
de que já me tinha dado conta ao acordar. Pensei
que viesse lá de fora, mas não. Ao agachar-me
junto dos deuses para os aconchegar, o cheiro
tornou-se tão intenso que fiquei tonta. Afinal os
deuses já não estavam aqui. No lugar em que
tinham estado, havia agora três sem-abrigo.
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