Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 77

depressa, num instante o meu cafezinho ia ficar pronto. Desculpem. Desculpem, com licença. Com licença. Obrigada. Este barulho lá fora. Desculpem. A senhoria já tinha desistido de arrendar o espaço, ficou contente quando soube que eu estava interessada, fez-me um preço em conta e tudo, nada era pior do que ter isto abandonado. Também vive no prédio dos ricos, mas não no último andar como o Mil-folhas. Ele não se importou que eu tenha vindo para o antigo teatrinho. Parece até gostar. Trata-me bem, ofereceu-se para fazer um desconto no fornecimento dos bolos sem que lhe tivesse pedido nada. O barulho não pára. Com licença, posso? Obrigada. Desculpem. Com licença. Porque é que o barulho não pára? Nas noites de tempestade o mar é ensurdecedor, mas não há mar lá fora. Só o rio por detrás do prédio dos ricos. Também já não há aplausos dos espectadores, o teatrinho fechou há muito. O barulho é cada vez maior. Logo no primeiro dia, improvisei ali ao fundo um sítio onde dormir. Quando me deitei, fiquei a ver o céu através do buraco por onde tinha entrado, o buraco aberto nos tijolos que emparedavam uma das janelas. Parecia um cenário. As noites ainda não estavam frias como agora, sabia bem o vento fresco com o cheiro do rio. Adormeci em paz como nunca tinha adormecido. Pouco depois os três deuses apareceram, não fizeram barulho, tal e qual como da outra vez. Chegaram separados, mas reconheci-os. Aninharam-se cada um no seu canto. Apesar de falarem baixinho para si mesmos, conseguia ouvi-los. O primeiro deus estava a passar por aqui quando viu o buraco aberto e entrou, estava contente com o que eu tinha feito, eu queria agradecer-lhe o dinheiro que me deram, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa ele pôs-se a ressonar. O segundo deus criticou-me por eu estar a dormir no melhor sítio, achava que isso não prometia nada de bom, ofereci-me para trocarmos de lugar, não sabia que eles vinham, não me respondeu e pôs-se a ressonar também. O terceiro deus achou que era cedo para se saber como é que as coisas iam ficar por aqui e se valiam a pena, prometi que ia arranjar tudo para poder ajudar os outros, que me ia esforçar por não os desiludir. Também ele se pôs a ressonar. Quando acordei, vi o volume dos corpos recortados na luz. Estava contente por ter os deuses aqui, comigo. Ia esperar que acordassem e agradecer-lhes. Levantei-me, pé ante pé. Havia um cheiro esquisito de que já me tinha dado conta ao acordar. Pensei que viesse lá de fora, mas não. Ao agachar-me junto dos deuses para os aconchegar, o cheiro tornou-se tão intenso que fiquei tonta. Afinal os deuses já não estavam aqui. No lugar em que tinham estado, havia agora três sem-abrigo. 77