vida”, sustentáculo de qualquer comunidade
humana. Da relação entre uso e forma de vida
solta-se o sentido. Daí que Wittgenstein tenha de
rejeitar o cepticismo quanto à possibilidade de
alguém comunicar, por exemplo, a dor que sente�.
Dissimular, uma prerrogativa humana
Claro que há pessoas que dissimulam dores que
não têm, mas se todos nós, ou a maior parte de
todos nós, as dissimulássemos, seria muito difícil
que os humanos tivessem engendrado o
sentimento de compaixão (o sentimento
comunitário por excelência) e que tivessem
inventado os analgésicos.
Um cão ou um gato não podem dissimular dores
que não têm, só os humanos o podem fazer. E
porquê? Porque aprenderam a falar e outras
actividades afins e complementares, gestos,
movimentos musculares, às vezes no limiar do
perceptível (analiticamente falando), em particular
do rosto, posturas do corpo. A tudo isto, em
conjunto ou por camadas e graus, chamou
Wittgenstein “jogo de linguagem” Aprendendo a
falar, aprendemos a mentir, a trair, a dissimular, a
enganarmo-nos a nós próprios, a enganar os
outros, mas também aprendemos a prometer e a
cumprir a promessa, a perdoar, a exercitar a
lealdade, a ser autêntico, a abster-se de
envergonhar os outros: “Aqui apenas podemos
_______________________
� Isto insere-se na questão das linguagens privadas, das quais não me
irei ocupar.
descrever e dizer: a vida humana é assim”
(“Observações sobre O ramo dourado de Frazer”).
Coda sobre mentira e criatividade
Se a dissimulação se insere num plano ético,
também, e com que importância, num plano lúdico,
onde sobressai o faz de conta, o poder ser muitos,
gestos criativos que as brincadeiras infantis
engendram desde cedo.
Como Nietzsche viu de maneira exemplar, há na
criatividade uma mentira constante. Aliás, é
curioso que a palavra grega para actor seja
hypocrités�, e é fácil verificar que de actor se
passou, por evolução dos usos da palavra, a
hipócrita, o dissimulado. Por um lado, a máscara é
uma forma subtil de dissimulação, artística e
estilística, como é o caso no teatro grego,
mostração visível de que o actor não é ninguém e
pode ser qualquer personagem, por incorporação e
possessão. No Nascimento da tragédia, Nietzsche
faz-nos assistir ao modo como de uma comunidade
de adeptos do deus Dioniso, um coro em êxtase, se
destaca um dos elementos: a visão do coro
dionisíaco acabou de encarnar num personagem.
Isolando-se, ele toma a palavra e põe a máscara: eis
o actor, aquele que protagoniza a dor humana,
Prometeu, por exemplo. Pelo mesmo processo
_______________________
� A palavra começou por se aplicar àquele que dá uma resposta, no
sentido de interpretar um sonho ou uma visão; um adivinho ou um
profeta.
55