Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 55

vida”, sustentáculo de qualquer comunidade humana. Da relação entre uso e forma de vida solta-se o sentido. Daí que Wittgenstein tenha de rejeitar o cepticismo quanto à possibilidade de alguém comunicar, por exemplo, a dor que sente�. Dissimular, uma prerrogativa humana Claro que há pessoas que dissimulam dores que não têm, mas se todos nós, ou a maior parte de todos nós, as dissimulássemos, seria muito difícil que os humanos tivessem engendrado o sentimento de compaixão (o sentimento comunitário por excelência) e que tivessem inventado os analgésicos. Um cão ou um gato não podem dissimular dores que não têm, só os humanos o podem fazer. E porquê? Porque aprenderam a falar e outras actividades afins e complementares, gestos, movimentos musculares, às vezes no limiar do perceptível (analiticamente falando), em particular do rosto, posturas do corpo. A tudo isto, em conjunto ou por camadas e graus, chamou Wittgenstein “jogo de linguagem” Aprendendo a falar, aprendemos a mentir, a trair, a dissimular, a enganarmo-nos a nós próprios, a enganar os outros, mas também aprendemos a prometer e a cumprir a promessa, a perdoar, a exercitar a lealdade, a ser autêntico, a abster-se de envergonhar os outros: “Aqui apenas podemos _______________________ � Isto insere-se na questão das linguagens privadas, das quais não me irei ocupar. descrever e dizer: a vida humana é assim” (“Observações sobre O ramo dourado de Frazer”). Coda sobre mentira e criatividade Se a dissimulação se insere num plano ético, também, e com que importância, num plano lúdico, onde sobressai o faz de conta, o poder ser muitos, gestos criativos que as brincadeiras infantis engendram desde cedo. Como Nietzsche viu de maneira exemplar, há na criatividade uma mentira constante. Aliás, é curioso que a palavra grega para actor seja hypocrités�, e é fácil verificar que de actor se passou, por evolução dos usos da palavra, a hipócrita, o dissimulado. Por um lado, a máscara é uma forma subtil de dissimulação, artística e estilística, como é o caso no teatro grego, mostração visível de que o actor não é ninguém e pode ser qualquer personagem, por incorporação e possessão. No Nascimento da tragédia, Nietzsche faz-nos assistir ao modo como de uma comunidade de adeptos do deus Dioniso, um coro em êxtase, se destaca um dos elementos: a visão do coro dionisíaco acabou de encarnar num personagem. Isolando-se, ele toma a palavra e põe a máscara: eis o actor, aquele que protagoniza a dor humana, Prometeu, por exemplo. Pelo mesmo processo _______________________ � A palavra começou por se aplicar àquele que dá uma resposta, no sentido de interpretar um sonho ou uma visão; um adivinho ou um profeta. 55