Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 56

virão à cena o segundo e o terceiro actores�. Aqui, Apolo, o deus que gera a criatividade onírica (fonte do oráculo e da sua decifração ) toma a dianteira. Em rigor, tanto as máscaras que ocultam o rosto do actor como a invenção poética são fruto do princípio apolíneo, já a profundidade da dor que trespassa o viver humano e o faz entrar em êxtase, procede da embriaguez dionisíaca. Mas essa profundidade só se pode dar a conhecer pela aparência do sonho. Por outro lado, a máscara é um acto terapêutico, para providenciar àquele que a põe furtar-se ao reconhecimento de qualquer outro, como precaução e defesa. No caso de Nietzsche, a máscara é usada assim, fundindo-se com o acto estilístico, o acto de escrita, não só para pôr à prova os bons leitores, como para afastar os maus leitores, aqueles que querem ser enganados. Que Zaratustra seja “um livro para todos e para ninguém” é a melhor pedra-de-toque para o alcance da máscara. a pior espécie de traidores, aqueles que matam os seus próprios convidados. Estes anfitriões perversos põem em causa, de maneira irreversível – mais do que outra espécie de traidoresassassinos e mais do que os ladrões –, o sustentáculo de qualquer vida humana: a confiança. Dar morte a um convidado através da refeição oferecida é o caso mais grave de atropelo das nossas expectativas vitais. Se o primeiro princípio da vida humana é para Dante a liberdade (de tal modo que colocou à entrada do Purgatório um suicida, Catão, pela razão decisiva de ele se ter dado morte por lealdade para com os seus ideais de uma vida livre), já a confiança é o lastro sem o qual aquele princípio não pode actualizar-se. Trair é um caso-limite da dissimulação, trair os seus convidados envenenando-os é o caso-limite de dissolução da confiança, condição sentimental de qualquer comunidade humana. Coda sobre a confiança Dante colocou no último círculo do Inferno da Comédia�, nas profundezas do seu cone invertido, 56 _______________________ � Sabe-se que as tragédias primitivas começaram por ter apenas um actor em cena, embora só tenhamos documentos literários de peças com dois e três actores. Foi Sófocles a introduzir o terceiro actor. Em Ésquilo vemos sempre apenas dois em cena. 6. Assim chamou Dante ao seu poema. A determinação “Divina” foi acrescentada por um editor veneziano no século XVI.