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O terceiro pegou-me numa das mãos, ergueu-a e
depois deixou-a cair com estrondo sobre o tampo
da mesa. É melhor acordá-la, disse o terceiro deus.
Comecei a ouvir um choro. Forte, muito forte. Abri
os olhos estremunhada, vi os três deuses
esconderem-se à pressa debaixo dos lençóis, era
capaz de jurar que eram eles. Não pude confirmar,
o choro era cada vez mais forte, tinha de ir ver o
que era. Vinha lá de fora. Abri a porta do café ainda
tonta, quase tropecei na Ana. Alguém a tinha
deixado ali, dentro de uma cestinha. Abandonada.
Tão pequenina, uma trouxinha de nada. Peguei-a ao
colo, trouxe-a para dentro, puxei pelo lençol que
estava mais à mão e embrulhei-a. Encostada a mim,
calou-se. Truz truz. Quem é? Sou eu. Eu quem?
Dona Anica, como está?, passou bem?, chuác,
chuác. Vou tomar conta dela, quero tomar conta
dela. Quero garantir-lhe um futuro bom, garantir
que vai ser feliz. Mas para tomarmos conta de
alguém, para o fazermos como deve ser, é preciso
muito mais do que a vontade.
7. Basílio
… dois, três, quatro, cinco, sete, oito, nove, dez,
onze, doze, quinze, dezasseis, dezassete, dezoito,
vinte, vinte e dois, vinte e cinco, vinte seis, vinte
sete, vinte e nove, trinta. Caixotes, caixotes e mais
caixotes, Todos iguais uns aos outros. São já muitos
e virão ainda mais, é preciso começar a pô-los de
forma organizada, criar uma ordem, o que não se
arruma ocupa espaço de mais. As mesas e cadeiras
estão empilhadas a um canto com o resto das
coisas do café, vou mandar levar tudo, já não
servem para nada. Com os outros armazéns já
cheios e a fábrica a continuar a produzir, não fazia
sentido manter o café aberto. Até porque agora a
Mónica passa grande parte do tempo fora, não ia
ficar eu a servir às mesas, faço mais falta a tratar de
outras coisas. As pessoas deram conta de mim
quando comecei a vir mais vezes e a ficar mais
tempo, vizinhos, clientes ou gente que conhecia a
Mónica. Tinha de estar sempre a dizer, sou o
Basílio, o primo da Mónica. Muitos preferem que
seja eu que aqui estou em vez da Mónica. Sentemse
mais seguros, acham que foi por minha causa
que a fábrica começou a funcionar. E têm razão.
Mesmo recebendo uma miséria e sendo duro o
trabalho que têm de fazer na fábrica, preferem que
esteja aqui eu e haja emprego para todos, do que
estar a Mónica a fazer panelões de comida e
mesmo assim continuar a haver fome.
Mónica ou Basílio. Basílio ou Mónica. Nunca Mónica
e Basílio. Inventámos uma avó doente a viver longe
no campo, um de nós tinha de estar sempre com
ela. Assim ninguém desconfia da verdadeira razão
por que quando um está, o outro não pode estar.
Foi ao Mil-folhas que contámos a história da avó
pela primeira vez. Contei-lha eu logo no primeiro
dia em que voltei, depois de ir buscar o dinheiro ao
quarto da pensão. O Friedrich partia para o norte