Fluir nº 5 - junho 2020 - | Page 100

100 O terceiro pegou-me numa das mãos, ergueu-a e depois deixou-a cair com estrondo sobre o tampo da mesa. É melhor acordá-la, disse o terceiro deus. Comecei a ouvir um choro. Forte, muito forte. Abri os olhos estremunhada, vi os três deuses esconderem-se à pressa debaixo dos lençóis, era capaz de jurar que eram eles. Não pude confirmar, o choro era cada vez mais forte, tinha de ir ver o que era. Vinha lá de fora. Abri a porta do café ainda tonta, quase tropecei na Ana. Alguém a tinha deixado ali, dentro de uma cestinha. Abandonada. Tão pequenina, uma trouxinha de nada. Peguei-a ao colo, trouxe-a para dentro, puxei pelo lençol que estava mais à mão e embrulhei-a. Encostada a mim, calou-se. Truz truz. Quem é? Sou eu. Eu quem? Dona Anica, como está?, passou bem?, chuác, chuác. Vou tomar conta dela, quero tomar conta dela. Quero garantir-lhe um futuro bom, garantir que vai ser feliz. Mas para tomarmos conta de alguém, para o fazermos como deve ser, é preciso muito mais do que a vontade. 7. Basílio … dois, três, quatro, cinco, sete, oito, nove, dez, onze, doze, quinze, dezasseis, dezassete, dezoito, vinte, vinte e dois, vinte e cinco, vinte seis, vinte sete, vinte e nove, trinta. Caixotes, caixotes e mais caixotes, Todos iguais uns aos outros. São já muitos e virão ainda mais, é preciso começar a pô-los de forma organizada, criar uma ordem, o que não se arruma ocupa espaço de mais. As mesas e cadeiras estão empilhadas a um canto com o resto das coisas do café, vou mandar levar tudo, já não servem para nada. Com os outros armazéns já cheios e a fábrica a continuar a produzir, não fazia sentido manter o café aberto. Até porque agora a Mónica passa grande parte do tempo fora, não ia ficar eu a servir às mesas, faço mais falta a tratar de outras coisas. As pessoas deram conta de mim quando comecei a vir mais vezes e a ficar mais tempo, vizinhos, clientes ou gente que conhecia a Mónica. Tinha de estar sempre a dizer, sou o Basílio, o primo da Mónica. Muitos preferem que seja eu que aqui estou em vez da Mónica. Sentemse mais seguros, acham que foi por minha causa que a fábrica começou a funcionar. E têm razão. Mesmo recebendo uma miséria e sendo duro o trabalho que têm de fazer na fábrica, preferem que esteja aqui eu e haja emprego para todos, do que estar a Mónica a fazer panelões de comida e mesmo assim continuar a haver fome. Mónica ou Basílio. Basílio ou Mónica. Nunca Mónica e Basílio. Inventámos uma avó doente a viver longe no campo, um de nós tinha de estar sempre com ela. Assim ninguém desconfia da verdadeira razão por que quando um está, o outro não pode estar. Foi ao Mil-folhas que contámos a história da avó pela primeira vez. Contei-lha eu logo no primeiro dia em que voltei, depois de ir buscar o dinheiro ao quarto da pensão. O Friedrich partia para o norte