Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 32

Há, aliás, que alertar para as inúmeras barreiras que os investigadores têm de ultrapassar sistematicamente em Portugal. Apesar das tantas décadas passadas sobre a ditadura, o acesso a documentos históricos continua a pautar-se por uma atitude de secretismo, de dificuldade de consulta e - pior de tudo - de discricionariedade, que torna impossível sabermos com que regras podemos trabalhar. Muitas vezes, mudam de instituição para instituição e remetem de artigos para articulados, que só um advogado (e experiente) poderia traduzir. Outro caso típico é o das múltiplas assinaturas e despachos exigidos para aceder a um determinado documento. Mesmo quando a maior parte das vezes nem temos a certeza se esse papel nos vai trazer algo de importante para a investigação. Aconteceu-me com o pedido de consulta de uma correspondência. Depois de muita insistência e dificuldades, chega finalmente à caixa de correio eletrónico a autorização para ler o que Sophia havia escrito a um amigo. Abro com grande expectativa. Mas o que toda a minha insistência e empenho tinham para me recompensar era um telegrama. De uma linha. Claro que uma linha pode ser providencial numa 32 investigação. Só que não era. As palavras por que tanto esperara não passavam de qualquer coisa dentro do género «vou chegar atrasada». Prova de que não tem de ser assim foi a atitude exatamente oposta que encontrei na Alemanha, onde pude consultar com a maior das facilidades os arquivos que me permitiram confirmar as origens do bisavô de Sophia, Jan Andresen. Assim como me foi facultada cópia do diário da mulher daquele que foi um dos melhores amigos de Jan, o capitão Eduard Knudtsen. Há, portanto, que ser perseverante para conseguir alguma coisa que se pareça com a realidade dos factos, ou seja, a realidade baseada em fontes. Até porque, como lembra Mário de Carvalho (2014, p. 123), «mesmo a incoerência duma personagem incoerente tem que ser coerentemente construída». Uma biografia é uma obra de não ficção, logo obrigada a obedecer ao rigor da informação. Ao contrário do que parece por vezes insinuar-se, a ficção não tem de ser melhor do que os factos: «Manter-se fiel aos factos é a melhor literatura de todos os géneros - poesia, ficção ou não ficção - a que desperta emoções, que inspira ideias, quebra fronteiras de estilos, e questiona normas sociais» (Gutkind, 2007). O único «problema» é que os factos dão muito mais trabalho. Se as fontes documentais têm as suas vicissitudes, as testemunhais têm certas especificidades. No caso da biografia de Sophia de Mello Breyner Andresen, cujo centenário do nascimento se