Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 33

celebrou em 2019, pareceu-me importante não ignorar o facto de que dentro de poucos anos deixaremos de poder contar com muitos dos testemunhos vivos que privaram com Sophia. Entre os cerca de 60 testemunhos que recolhi, Júlio Pomar, que ilustrou um dos seus livros infantis («O Cristo Cigano»), morreu antes mesmo da publicação da biografia. Havia, ainda assim, muitas pessoas que conheceram a poeta. Tantas que importava também fazer uma seleção. Porquê falar com uns e não com outros? Interessava ouvir os que conheceram intimamente a biografada. Mas não só. Durante o trabalho de campo aconteceu-me ouvir de alguns testemunhos que não tinham muito para contar. Por vezes era preciso insistir e valorizar o que os entrevistados desvalorizavam. Os relatos casuísticos são primordiais num trabalho como este. São eles que me vão trazer aquele detalhe, aquele episódio, aquela anedota que fazem a riqueza de uma biografia. Caso contrário, ficaremos reféns das datas e feitos do biografado, correndo o risco de entregar aos leitores uma obra rica em enumerações, mas enfadonha em estilo. Tal não significa retirar seriedade ao trabalho. Pelo contrário, são os detalhes (eventualmente mundanos) que nos permitem dar sentido a qualquer história como um todo. Importa manter a integridade dos factos sem esquecer o poder de uma boa narrativa. A este propósito lembro-me sempre do que talvez seja um dos maiores equívocos da produção literária: o de que ler muito fará um bom escritor. Sei bem que é um clássico, mas não só está por provar, como merece o repúdio da autora em causa. Sophia não lia muito. Aliás, quando a mãe ralhava porque achava que ela devia ler mais, a poeta respondia: «Mas eu sou escritora, não sou leitora». A ideia pode chegar a parecer absurda porque sempre ouvimos que é preciso ler bem para escrever melhor, mas se pensarmos nas palavras de Shopenhauer compreendemos que aquela insubordinação é absolutamente coerente com Sophia. «Em geral, estudantes e estudiosos (...) têm em mira apenas a informação, não a instrução. A sua honra é baseada no facto de terem informações sobre todas as pedras, ou plantas, ou batalhas, ou experiências, sobre o resumo e o conjunto de todos os livros. Não lhes ocorre que a informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma. Diante da imponente erudição de tais sabichões, às vezes digo para mim mesmo: Ah, essa pessoa deve ter pensado muito pouco para poder ter lido tanto! (...) Sinto necessidade de me perguntar se o homem tinha tanta falta de pensamentos próprios que era preciso um 33 afluxo contínuo de pensamentos alheios.»