celebrou em 2019, pareceu-me importante não
ignorar o facto de que dentro de poucos anos
deixaremos de poder contar com muitos dos
testemunhos vivos que privaram com Sophia.
Entre os cerca de 60 testemunhos que recolhi, Júlio
Pomar, que ilustrou um dos seus livros infantis («O
Cristo Cigano»), morreu antes mesmo da
publicação da biografia.
Havia, ainda assim, muitas pessoas que
conheceram a poeta. Tantas que importava
também fazer uma seleção. Porquê falar com uns e
não com outros? Interessava ouvir os que
conheceram intimamente a biografada. Mas não só.
Durante o trabalho de campo aconteceu-me ouvir
de alguns testemunhos que não tinham muito para
contar. Por vezes era preciso insistir e valorizar o
que os entrevistados desvalorizavam. Os relatos
casuísticos são primordiais num trabalho como
este. São eles que me vão trazer aquele detalhe,
aquele episódio, aquela anedota que fazem a
riqueza de uma biografia. Caso contrário, ficaremos
reféns das datas e feitos do biografado, correndo o
risco de entregar aos leitores uma obra rica em
enumerações, mas enfadonha em estilo. Tal não
significa retirar seriedade ao trabalho. Pelo
contrário, são os detalhes (eventualmente
mundanos) que nos permitem dar sentido a
qualquer história como um todo. Importa manter a
integridade dos factos sem esquecer o poder de
uma boa narrativa.
A este propósito lembro-me sempre do que talvez
seja um dos maiores equívocos da produção
literária: o de que ler muito fará um bom escritor.
Sei bem que é um clássico, mas não só está por
provar, como merece o repúdio da autora em causa.
Sophia não lia muito. Aliás, quando a mãe ralhava
porque achava que ela devia ler mais, a poeta
respondia: «Mas eu sou escritora, não sou leitora».
A ideia pode chegar a parecer absurda porque
sempre ouvimos que é preciso ler bem para
escrever melhor, mas se pensarmos nas palavras de
Shopenhauer compreendemos que aquela
insubordinação é absolutamente coerente com
Sophia.
«Em geral, estudantes e estudiosos (...) têm em
mira apenas a informação, não a instrução. A
sua honra é baseada no facto de terem
informações sobre todas as pedras, ou plantas,
ou batalhas, ou experiências, sobre o resumo e
o conjunto de todos os livros. Não lhes ocorre
que a informação é um mero meio para a
instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si
mesma. Diante da imponente erudição de tais
sabichões, às vezes digo para mim mesmo: Ah,
essa pessoa deve ter pensado muito pouco
para poder ter lido tanto! (...) Sinto necessidade
de me perguntar se o homem tinha tanta falta
de pensamentos próprios que era preciso um 33
afluxo contínuo de pensamentos alheios.»