Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 43

com queijo e presunto e retomou a sua reflexão. Ao saborear a refeição tardia, sob o ambiente húmido e fresco das três da manhã, lembrou-se do seu primeiro namoro. As mãos entrelaçadas e aquecidas uma pela outra, o sangue a pulsar nas veias, o nervosismo contido, o medo de dizer as palavras erradas. O início que se tinha transformado em meses de conforto e aceitação. A adolescência, onde a autoestima variava entre muito boa e muito má. A sensação de ter alguém com quem partilhar momentos, a vivacidade de duas pessoas serem uma só. Depois de todas as experiências boas, o fim da relação revelara-se uma descarga de emoções com as quais o rapaz não tinha aprendido a lidar. Sentia-se fora de si próprio, como se a sua pessoa tivesse sido rejeitada por todos os seres humanos do mundo. Perante esta estranheza, esta emoção desconhecida, o rapaz teve de se abstrair do seu passado para se focar em si próprio. Lembrou-se do quão mais resistente se tornou, mas nunca deixou de sentir nostalgia pela relação que tinha tido e que perdera. Mas, de súbito, o rapaz apercebeu-se do equívoco que criara. As memórias não se evaporam, não deixam de ser o que eram, não se perdem. Continuam, para sempre, imarcescíveis em algum lado, mesmo que eventualmente esvaziadas de utilidade por questões alheias ao indivíduo, como o tempo que passa ou as pessoas que mudam. O momento existe para sempre e nunca pode ser perdido nem desvalorizado porque fica registado exatamente como aconteceu, por mais breve que seja, em algum lugar no Universo. O rapaz arrumou os pratos e talheres que tinham sido deixados na mesa, enquanto se recordava dos instantes da sua vida que tinham sido positivos, o que lhe causou um aperto no peito. Com todas as falhas que já tinha cometido, sentia-se uma pessoa diferente da que era no passado. Com todos os erros e oportunidades que perdera, entendeu que os momentos de celeridade não passavam de faíscas efémeras num bloco de imperfeições. Pensou que este sentimento de nostalgia era a sua substância original, espontaneamente criada desde a infância, a pedir que fosse restabelecida. A felicidade das pequenas coisas, a facilidade com que tinha em comunicar com todos, a ausência de obstáculos sociais que só nos começam a invadir quando se ganha consciência. Sentou-se na rede onde tinha deixado o seu livro e esticou as pernas, relaxando os músculos e cedendo ao cansaço. É impossível reconstruir um momento exatamente como foi e o ser humano evolui. Mas o presente é a metamorfose das nossas ambições e perfeições ingénuas do passado que foram enganosamente avelhentadas. E quanto às faíscas breves de glória que surgem, ocasionalmente, ao longo da nossa vida, essas são a recompensa da resistência dos nossos fracassos. Não devem ser encaradas como 43