Fluir nº 11 - Abril 2023 | Page 8

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O trauma , que som tem ?
O pai entra em casa , a tranquilidade sai . A menina – a adolescente , a mulher – ouve a chave a rodar na fechadura e encolhe-se para um lugar seguro dentro de si . Vai começar a tortura das perguntas , das manipulações sádicas , das acusações e dos castigos . Muitos anos mais tarde , ouvirá o som da chave a rodar na fechadura , e terá de se esforçar para não fugir . É o marido o marido o marido , repetirá ela como um mantra , é a casa deles , é o porto seguro . A um canto , a tranquilidade lambe feridas antigas que não cicatrizam .
O horror , que som tem ?
Em Bergen-Belsen , já pouco resta do antigo campo de concentração nazi . Algumas pedras rasas dão sinal dos barracões que ali houve . No imenso campo verde , destacam-se elevações de terreno com formas geométricas , cobertas de vegetação . São as valas comuns . Aqui jazem 5000 seres humanos , ali foram enterrados 1000 seres humanos , 2500 seres humanos mais além . Os números , e o seu silêncio insuportável . Em algum momento antes daquele lugar , o som das palavras mudou . A princípio , poucos repararam que havia quem escolhesse acentuar sílabas mais equívocas .
Com o tempo , muitos aderiram à moda de dizer coisas erradas com palavras que pareciam certas . A seguir , mataram os nomes , inúmeros nomes que viviam seguros na boca de alguém , trocaram-nos por números gravados com a tinta do ódio , entregaram- -se à vertigem sádica de destruir toda a humanidade das suas vítimas , e atiraram-nas com brutalidade para a infinita mudez . É este o som dilacerante do horror : o silêncio desse descampado no meio da floresta .
O afinal : o O , que som tem ?
O O tem som ora de Ó , ora de Ô , ora de U , ora de algum matiz entre uns e outros , conforme o seu lugar na palavra e as letras com quem anda metido . Por vezes , também , conforme o contexto de quem a diz . É o caso do dezóito e do dezôito , que nascem de contextos diferentes e se instalam no mundo , a par da brisa e da tempestade , da luz e do eco , das árvores e dos descampados , das casas e das ruas , dos pardais das galinhas das gaivotas , dos seres humanos e dos gestos desumanos . A par do silêncio que significa amor e do silêncio que significa horror , a par dos muitos silêncios entre ambos . Tudo coexiste neste mundo feito de diversidade , e nem sempre sabemos identificar o que há de errado no desigual - como por vezes , perante uma palavra , hesitamos em dizer o som que o O tem .