Fluir nº 11 - Abril 2023 | Page 34

( Aquitetura do Som )

( Diogo Leite Castro )
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I . O telefone toca . A onda sonora propaga-se devagar , no limiar da audibilidade , e passa lentamente por mim , entre o desequilíbrio e o desespero , até se perder nas minhas costas . Não ouvi . Era um pedido de casamento . Alguém queria casar comigo . Não disse que sim . Também não disse que não . Estava concentrado a trabalhar .
O telefone volta a tocar . Desta vez , a onda libertase e sinto uma pressão intangível a deslocar-se em todas as direções . Levanto os olhos . Essa pressão vem ter comigo , torna-se insuportável e eu atendo . É o meu chefe . Não costuma ligar àquela hora . O que se passa ? Não se passa nada , diz . Estás despedido .
Retrospetivamente , visualizo os dois momentos . Recordo o ruído da sala e percebo que me deixei enganar pelo toque errado . Era demasiado novo para ser despedido . Demasiado velho para começar de novo . Devolvo a chamada não atendida . Aquela que não ouvi . Explico que a culpa não foi minha . Estava concertado a trabalhar e o som deslizou nas minhas costas , como um fio de água , e continuou a deslizar até à sala contígua . Alguém ao longe poderá tê-lo ouvido , sugiro , mas eu não ouvi . Isso não quer dizer que não me queira casar contigo .
Tiveste a tua oportunidade , interrompe . Gostava de ti . É verdade . Mas despedido vales menos .
II . Sou atingido por uma desorientação . Perco a sensação do lugar . Vejo imagens onduladas diante de mim , que fazem vibrar o teclado , o ecrã do computador e a janela gelatinosa . Arrumo as coisas e vou embora . Só depois reparo que não tenho sítio para onde ir . Ando bastante , demasiado , e sem querer entro numa sala de espetáculos . Sento-me na fila da frente . As luzes apagam-se . Um holofote redondo concentra-se no piano em cima do palco . O pianista entra na sala e as pessoas começam a bater palmas . Seguem-se as vénias , os agradecimentos . Senta-se depois no banco e pousa no atril o seu relógio de bolso . Ativa o cronómetro , a contagem avança , mas fica tudo parado e em silêncio . Ouve-se pouco , talvez a respiração , a articulação do tempo com o espaço , a vibração e a expetativa . Olho para trás . As pessoas parecem estar interessadas , a perscrutar as partículas de pó ampliadas pela faixa de luz na atmosfera . O silêncio , no entanto , permanece . Viro-me novamente para a frente . O pianista é um indivíduo elegante de cabelo grisalho que ajeita as abas da casaca . Enquanto se espera , ele não toca . Prefere limpar a lente dos óculos , destacar o lenço na lapela . Alguém protesta . O que é aquilo ? Um sorriso .