Fluir nº 1 - setembro 2018 | Page 24

Fluir nº1 - Renascimentos - 2018 SCRIPT EM HONRA DE MARGUERITE DURAS E ALAIN RESNAIS, ENTRE OUTROS Júlia Lello 24 Lembras-te principalmente da natureza, que nesse tempo ainda não tinha sido maculada, apenas porque tu não perceberas que ela já o fora. Havia uma envolvência azul que era uma confusa mistura de céu com mar: um azul claro e luminoso essa envolvência, com zonas de verde também, e também grandes espaços brancos. Mas predominava o azul, embora a luz fosse de facto branca. E o espaço era habitado pelo seu dono, o qual estava no centro desse espaço e o espaço no centro de tudo o resto, pois ele sabia que tu o adoravas, e isso conferia- lhe a divindade, e ele sabia-o, sabia tudo e mesmo assim deixou-te. E apesar disso também tu sabes que foste amada, ele não estava a mentir e no entanto deixou-te. E esse gesto que nunca entendeste é que criou o abismo. Um dia perdeste a luz clara e também a envolvência azul com sequências de branco e também de verde. Perdeste o cenário da felicidade. E perdeste-te então de ti durante muito tempo, primeiro por completo, depois cada vez menos, recuperando pedaço a pedaço sobre as ruínas, reconstruindo dos estilhaços devagar, reconquistando um a um pedaços de território alienados, sem nunca porém teres voltado a recuperar tudo, até hoje, talvez até sempre. Até que subitamente descobriste que poderias aprender com os necrófilos e fazer dos restos mortais um tesouro e uma festa; embalsamar o amor e vesti-lo com galas, para assim mesmo gozá-lo enquanto cadáver; aprisionar o ser amado nas tuas memórias, prendê-lo a objectos e ritos, e assim, de certa forma, secretamente continuar a possuí-lo…da única forma possível. Branca de Neve no seu caixão de vidro, aí jazem os restos do que foi um amor que não pode medir-se, que ninguém, nem tu própria, consegue já reconstituir. Temos todos de loucos, de voyeurs, de necrófilos, pelo menos um pouco. Fizeste portanto esse funeral, com pompa, e circunstância, também com ironia, obviamente, como convém a um Melodrama. E a estas exéquias chamaram por fim os psicólogos o luto da relação, enquanto que ao produto chamaremos poesia e ao processo Ressureição. ( in: Textos Pretextuais, Lisboa, Europress, 1991)