Fernando Meirelles na TRIP 1 | Page 5

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Qual foi sua maior autossabotagem? A primeira que me ocorre é em relação a Cidade de Deus no Festival de Cannes. O filme foi selecionado para a competição. Mas como o Walter Salles, um dos coprodutores do filme, havia sido convidado para o júri, surgiu um conflito de interesses. O Walter fez um lindo gesto e me perguntou se eu queria que ele saísse do júri. Aparentemente, o filme tinha chances de levar algum prêmio, mas respondi que não precisava. E fui sincero. Claro que poderia não ter ganhado nada, mas nem me dei a chance, mesmo estando tão perto.
Da sua geração, quantos casais você conhece que estão juntos há tanto tempo? Sou cercado por gente casada há 30 anos: meus vizinhos, que são amigos de uma vida, ex-colegas de faculdade, sócio, primos. Viver num mundo de gente casada há muito tempo talvez ajude. Como todo mundo, Ciça e eu tivemos uma crise ao longo do caminho. Para superar, fizemos um pacto em que um deveria respeitar o espaço do outro. Não precisamos estar juntos em tudo, como siameses. Sem essa obrigação, tudo fica mais leve. Ciça é a minha casa, o lugar para voltar toda noite, a referência que dá o meu norte, embora ela nem sempre perceba isso.
Você acha que ela nem sempre percebe isso porque você não demonstra? Lembrei de uma frase do John Banville:“ Amor é ação – é o que você faz, não o que sente”. Boa frase. Acho que até faço coisas, o que não faço é propaganda do que fiz para ganhar uns pontos. Talvez devesse dizer:“ Olha, fiz o macarrão deste jeito porque sei que é como você gosta”. Mas nunca digo. Apenas faço o que ela gosta mais regularmente do que o que eu gosto. Não para que ela perceba, mas para ver a Ciça satisfeita. Ela também me protege em silêncio, eu percebo.
Voltou à Cidade de Deus recentemente? Passo às vezes de carro pela Linha Amarela [ próxima ao bairro que dá nome ao filme ], mas faz muito tempo que não vou lá. Minha ligação com Cidade de Deus se dá pelo Cinema Nosso, uma ONG tocada por alguns atores que participaram do filme. Hoje, virou uma escola e um centro cultural na Lapa, no Rio.
O Cinema Nosso vive do seu investimento? O Cinema Nosso corre atrás de outros apoiadores. Banco apenas o predinho onde estão instalados. Faço outras doações regulares para instituições como Obra do Berço e Lar Santa Terezinha. Tenho vontade de apoiar alguma escola aqui em Carapicuíba, onde moro, para ver em quanto tempo seria possível melhorar os resultados do ensino, mas me falta tempo.
Por que a filantropia ainda é pequena no Brasil? Não temos essa cultura. Vale dizer que nos EUA, onde doações são mais comuns, eles fazem isso não por serem mais bonzinhos, mas por uma questão tributária. Quanto mais rico você for, maior será a mordida do leão americano. As doações que os ricos fazem podem ser abatidas da tributação da herança no futuro. Ou seja, eles preferem decidir em vida como usar seu dinheiro, em vez de deixar o governo decidir depois que eles morrerem.
Você conta que aos 14 anos tinha certeza de que teria uma morte prematura. Agora, aos 61, como encara o fim? Fato, mas errei. Ainda bem. Aos 14, tinha pavor da ideia da morte, não podia olhar para o céu à noite. Agora, a cada ano que passa, parece menos assustadora. Talvez seja uma das poucas vantagens de envelhecer, fora o cartão de estacionamento para idoso. A tolerância também aumenta com os anos. Me sinto mais paciente com todo mundo. Pessoas são como vinho, descobri: umas azedam quando envelhecem, outras vão apurando sabores e ficando sábias.
Os candidatos ao Oscar de Melhor Diretor em 2004, Clint Eastwood, Peter Jackson( que ficou com a estatueta), Sofia Coppola, Meirelles e Peter Weir
foto Camera Press / Jerry Watson
fotos teatro Gabriel Cabral / Folhapress filme Miramax / courtesy Everett Collection
Com a equipe da ópera Os pescadores de pérolas, em Belém, no ano passado; ao lado, em ação durante as gravações de Cidade de Deus( 2002)

“ tive uma depressão fulminante em 2005, sem razão aparente. pensar em morrer parecia uma ideia confortável”

Sessenta e um anos pesam? Ô, se pesam.
Por quê? Pesa saber que não há mais um tempo enorme pela frente, para fazer besteira e se meter em roubada. Isso muda sua perspectiva. Tempo passou a ser meu bem mais precioso. Em vez de me encher de atividades o tempo todo, como sempre fiz, tento garantir tempos para não fazer nada de“ produtivo”, como ir para a fazenda plantar cambuci, camu-camu e marolo, coisa que farei assim que acabar de responder esta entrevista.
Alguma religião ou superstição? Deus, Nirvana, Boitatá? Oficialmente, não. Se tivesse que escolher, talvez virasse budista. Os budistas que conheço não se acham melhores que ninguém. São tolerantes e em geral bem-humorados. Pelo pouco que conheço do budismo, sei que tentam compreender e trabalhar a favor das leis da natureza, o que me parece sensato.
Se pudesse escrever algo pra que você mesmo lesse aos 20 anos de idade, o que seria? Diria a mim mesmo para não ser tão
tímido como fui. Mandaria confiar mais no meu taco, principalmente com as mulheres. Nunca acreditava que elas pudessem estar dando mole para mim, só percebi isso tarde demais. Minha autoestima era muito baixa. Só depois dos 40 deixei de achar que eu era uma fraude. Se é que deixei de acreditar nisso.
Já fez análise? Por pouco tempo, menos do que gostaria. Tive uma depressão fulminante em 2005, sem razão aparente, tudo estava muito bem na minha vida. Pensar em morrer me parecia uma ideia confortável, então procurei ajuda. O processo foi muito intenso. Tive três sonhos apocalípticos, tão reais que até hoje sinto o que senti. Num deles, estava me esfacelando a ponto de perder a sanidade. Fazia um esforço enorme para manter minhas partes unidas, mas elas queriam se romper e, se rompessem, eu enlouqueceria. Parada sinistra. Parei a terapia para viajar e rodar o filme 360, acabei não voltando mais. Até hoje sou grato à minha terapeuta pelas fichas que caíram ali, e que ainda carrego no bolso.
Qual foi a última vez que chorou? Não sou fácil para chorar, mas costumo me emocionar até as lágrimas em cenas em que há relação entre pai e filho. A última vez que chorei foi quando os confetes verdes saíram de dentro dos aros olímpicos, na abertura. Foi como se a ideia que queríamos tanto espalhar estivesse sendo espalhada. A plateia reagiu forte, senti que havia entendido o recado. Chorei.
Como é a relação com seu pai? Comparado com os outros pais, o meu era como ter acertado na loteria. Lembro de ter tomado apenas uma bronca dele na vida, e merecida: fui brincar com um revólver de verdade que ele tinha escondido no armário. Só comecei a trabalhar aos 26, mas ele [ José, médico aposentado ] nunca me cobrou por isso. Sempre me senti meio em dívida com ele. Ele tem 94 anos, continua lendo como sempre e vive tranquilo. Aliás, ele e minha mãe estão bem. A família é muito unida, os netos almoçam na casa deles diariamente, gostam deles de verdade. Esqueça os suplementos, está provado, o que faz bem para a saúde é amor.
Você é mais de ver filmes ou de ler? Gasto mais tempo lendo. Leio todas as noites antes de dormir. Se vou para cama e não puxo um livro, parece que esqueci de escovar os dentes. Estou lendo Pornopopeia, do Reinaldo Moraes, que havia começado há três anos e parei no meio. Como tenho um emprego na Globo Filmes, recebo links de muitos filmes nacionais, então estou bem por dentro do cinema brasileiro.
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