A ROTA DO DRAGÃO
Aliados , a estátua foi retirada de um modo cuidado e transportada para o Paço Episcopal que , durante as décadas seguintes , passou a servir de Paços do Concelho . Após 1935 andou por vários outros locais : junto à medieva muralha fernandina no Largo do Actor Dias , nos jardins do Palácio de Cristal , no Terreiro da Sé , ao lado da reabilitada torre medieval popularmente designada como “ Casa dos 24 ” e , desde 2013 , numa das esquinas da Praça da Liberdade , muito próximo do seu lugar de origem . A popularidade de “ O Porto ” e do seu dragão pode ser medida , também , pelo grande número de réplicas que foram produzidas em cerâmica vidrada , embora a uma escala mais reduzida , para serem utilizadas como elementos decorativos em platibandas , cumeeiras , cornijas e fachadas de edifícios , nos finais do século XIX e inícios do XX . Produzidas pela afamada Fábrica de Cerâmica das Devesas , em Gaia , e embora apareçam identificadas no seu mais ilustrado e conhecido catálogo ( o de 1910 ) como representando “ Portugal ”, estas estátuas inspiram-se claramente no “ Porto ”, distinguindose da figura de Marte , deus da guerra , igualmente produzida pela empresa , por colocar no escudo a palavra “ Portucale ” ( forma arcaica de designar Portugal , mas também a cidade ) e por substituir o habitual penacho do capacete à romana por um dragão alado . E por isso , e graças a estas estatuetas cerâmicas , a cidade viu-se povoada nos seus telhados por inúmeros dragões , à semelhança do que acontecia na cobertura da Câmara Municipal . Mais de um século depois , nos nossos dias e apesar da erosão e natural fragmentação que foram registando ao longo de tanto tempo , subsistem ainda vários exemplares em imóveis no Carvalhido , em Monchique , na Praça da República , na Rua do Heroísmo , na Carcereira , na Boavista , na rua do Bonfim , em Sobreiras … Em torno de “ O Porto ”, e para lá da sua autoria , há duas outras interessantes dúvidas e mistérios que , provavelmente , nunca esclareceremos . Um deles prende-se com o facto de esta estátua não ter sido a primeira com tal designação . Houve outra e muito mais antiga , já referida em 1293 (!) como “ Porto ” ou “ Pedra do Porto ”, na rua das Eiras ( próximo da atual rua Chã ). Em 1593 terá passado para a Rua Francisca , perto dos Açougues , e subsistia ainda nos inícios do século XIX tendo sido descrita por Sousa Reis como “… em meio relevo e muito mal trabalhado e até monstruoso homem feito de pedra … e numa mão tinha uma haste , talvez figurando a lança de um guerreiro ; a esta figura chamavam O Porto ”. A partir dos inícios de Oitocentos deixa de haver referências ao “ Porto Velho ”, como também por vezes aparecia identificado . Terá sido então destruído ? Certo é que muito
pouco tempo depois ele reaparece , transfigurado e substituído pela nova estátua colocada no topo do novo edifício da Câmara Municipal . Mas , qual seria a origem dessa antiquíssima “ Pedra do Porto ”? Tendo em conta a sua ancestralidade e o facto de ser algo identitário para os portuenses , à luz das mais recentes interpretações que vêm sendo dadas às designadas “ estátuas de guerreiros ” ( erradamente designados como “ lusitanos ”) que se encontram em castros ou citânias da Idade do Ferro , é no mínimo tentador equacionarmos tão remota origem . Certo é que , nestes últimos anos , a arqueologia vem revelando que o morro da Sé foi um importante povoado nesse tempo . Outra hipótese , igualmente sedutora , era tratar-se de uma velha escultura romana ( e o Porto foi também um notável povoado nessa época ) de algum modo “ reabilitada ” no século XVI no contexto renascentista que , então , valoriza vestígios da época clássica . Certo é que essa escultura , esse antiquíssimo “ O Porto ”, existiu mesmo e chegou a ser visto por , então ainda criança , Almeida Garrett , que a ela se refere no seu famoso “ O Arco de Santana ”. Almeida Garrett que , enquanto portuense e assíduo frequentador da cidade , onde integrou as tropas liberais de D . Pedro aqui sitiadas durante o Cerco do Porto entre 1832 e 1833 , conheceu também “ O Porto ” que desde 1818 se encontrava no topo do edifício municipal , dominado pelo imponente dragão . E , por isso , e porque será ele , em 1836 , um dos responsáveis pela conceção do novo brasão da povoação , até que ponto é que , consciente ou inconscientemente , esse identitário dragão do “ Porto ” não o terá influenciado a colocar também , no topo das novas armas da cidade , um dragão ? Fica a dúvida , o mistério … e o dragão !
76 REVISTA DRAGÕES FEVEREIRO 2022