Diverso Online 1 | Page 3

|3|

Uma década sem Gisberta

Por: Flávia Caixeta

O corpo torturado de Gisberta foi encontrado submerso em um poço no prédio abandonado em que vivia. O mesmo que carregava a esperança, a força, o sofrimento e as cicatrizes era o de uma prostituta soropositiva, sem teto e sem identidade e não tinha rosto, sentimentos nem humanidade. O corpo de Gisberta não era dela, era dos outros, e os outros fizeram o que bem entenderam dele. Inúmeras mãos a tocaram, e quatorze delas foram responsáveis por não permitir que outras a tocassem de novo.

Quatorze mãos de crianças “inocentes” brincaram com a vida de uma mulher transexual de 44 anos, já bastante fraca devido a saúde debilitada causada pela vida marginalizada que foi obrigada a ter a partir do momento em que se mostrava uma pessoa com escolhas diferentes. Seu corpo, motivo de boa parte dos problemas que enfrentou em sua vida, fora violado e quebrado por crianças. Não perceberam em seus olhos o alarmante aviso desesperado de “cuidado, é frágil”. Eles acharam que era de ferro por suportar três dias de martírio, enquanto era amarrada e espancada.

Em 22 de fevereiro de 2017 completou 11 anos o seu assassinato. Ela agora é heroína, lembrada e vista como o ser humano gentil e doce que era. Agora Gisberta é vista e valorizada, pena que em vida os olhos da sociedade não pairavam sobre ela. Sua história não é motivo de vergonha, ódio nem intolerância. Hoje sua vida é valorizada, mas de nada adianta. Gisberta não ouve, não vê, não pensa e não reage assim como não reagiu há 11 anos atrás, quando desmaiada foi confundida com um cadáver e atirada no poço que finalmente lhe aliviou a dor ao tirar-lhe a vida. Ela que teve que se esconder a vida toda, foi escondida também em sua morte, jogada num buraco para nunca mais ser encontrada. Tentaram esconder seu rosto e sua história até no momento de sua dolorosa e injusta partida.

Afinal, o que aquela mulher tinha feito para merecer toda a gratuidade daquela violência? Que mal os jovens de idade entre 12 e 16 anos viram nela que precisasse ser exterminado? Terão sido seus seios contrastando com seu pomo-de-adão? Terá sido sua saia, ou seu batom? Será que não reconheceram toda a doçura e gentileza que todos os seus amigos e conhecidos ressaltavam?