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Onde podemos perceber a representação da herança cultural africana?
É possível perceber as contribuições dos diversos povos africanos em nossa cultura através de muitas práticas históricas, mas também nas atuais. A presença do dendê na nossa culinária, o conhecimento sobre as ervas (que influencia muitos estudos acadêmicos), a dança afro, alguns ritmos musicais como samba, reggae, o próprio samba-reggae (criado na Bahia), a nossa língua possui influências do banto, a predominância da oralidade, a moda, a religiosidade, tudo isso para citar alguns exemplos. Mas como cultura é uma coisa dinâmica, podemos identificar influências, mas não dá para falar em práticas genuinamente africanas, até porque a nossa experiência acontece a partir da diáspora forçada no processo de colonização, que traz consequências inclusive para o conhecimento sobre nossa história. Então o que sabemos sobre os 54 países africanos é muito limitado.
- Entre as festividades populares, quais são de origem afro? Elas preservam a sua forma original? O que mudou?
De origem africana eu não saberia dizer se tem, mas por exemplo a Lavagem do Bonfim, que ocorre na segunda quinta-feira de janeiro, é uma festa que nasce do ato de lavar as escadarias da igreja para os festejos religiosos, trabalho realizado por negros escravizados. Esta prática ganha uma proporção e se une ao ritual católico de celebrar o santo, mas também entra a questão do sincretismo religioso e o culto aa Oxalá. A Festa de Yemanjá, que acontece no dia 2 de fevereiro, nasce de uma promessa feita por pescadores da região do Rio Vermelho que pediam prosperidade, e depois ganha essa dimensão de candomblé a céu aberto. Temos o Bembé do Mercado, em Santo Amaro, maior candomblé de rua do mundo. No que se refere a preservação, acredito que tentamos conservar elementos, alguns aspectos, mas no que se refere a manifestações culturais é difícil falar em forma original, até porque é saudável para uma prática que ela se atualize, justamente porque culturas não são blocos estáveis.
- No que diz respeito à música e dança de origem afro, você percebe uma valorização? De que forma?
Primeiro é importante dizer que a existência negra é quase sempre associada a habilidades artísticas e esportivas, o que a vereadora carioca Jurema Batista denominou “cidadania lúdica”. Ainda é difícil, para muitos, pensar o negro produzindo conhecimento, em áreas como saúde e engenharias, ou até mesmo nas ciências humanas pelo caminho da academia. Esse lugar do lúdico como única possibilidade é uma armadilha, porque aparentemente enaltece nossas qualidades, mas na verdade nos limita. Acredito que música e dança ligadas a cultura africana ou afro-brasileira são mais palatáveis quando protagonizados por pessoas brancas. Temos exemplos de cantores de samba, de axé music, do próprio samba-reggae, companhias de dança, enfim, diversas pessoas que constroem suas carreiras a partir dessas contribuições. Aceitar a cultura negra desde que tenha uma cara branca é uma face do racismo, não tem outro nome. Mas tem grandes artistas negros assumindo esse protagonismo, e isso acontece há algum tempo, oferecendo outras formas de apreciar as nossas expressões artísticas. Podemos destacar Margareth Menezes, Lazzo Mattumbi, Carlinhos Brown, Os Tincoãs, Olodum, Orquestra Afronsinfônica, Rumpilezz, Baiana System, Attoxa, na dança podemos citar Balé Folclórico, Negrizu, que faz um trabalho primoroso na Escola Olodum, Experimentandonus, entre outros.
- As religiões de origem africana se difundiram pelo sincretismo, mas apesar disso existe a intolerância religiosa. De que forma você pensa que isso pode ser combatido?
Não sei se “difundiram” é a melhor palavra. É importante explicar que o sincretismo foi uma estratégia utilizada pelos negros escravizados para poder continuar cultuando seus deuses após a proibição dos colonizadores. Então a correlação feita pelo sincretismo foi uma questão de sobrevivência para a religião. Apesar de ser um valor bastante celebrado no imaginário baiano, alguns líderes religiosos da igreja católica e do candomblé não concordam muito que isso deva ser reforçado. A intolerância existe, na minha opinião, porque é melhor lidar com a ideia do sincretismo e fingir que vivemos pacificamente em igualdade de direitos do que admitir que o racismo é um problema social que se espalha em diversas áreas da vida das pessoas. Há um cinismo coletivo que não nos permite avançar nas pautas acerca da igualdade na prática. Porque a constituição diz que o Estado é laico e nos é garantido o direito de professar a nossa fé, mas o que vemos é esse ódio e demonização que é um desdobramento do racismo, sem dúvida. Nenhum problema relacionado ao racismo é fácil de solucionar, se fosse já nem precisaríamos mais falar sobre isso, mas acho que educação para a diversidade é um dos caminhos possíveis. E lembrar que combatemos intolerância com respeito.
- As religiões mais conhecidas são o candomblé e a umbanda, mas muitos as confundem. Qual a diferença entre ambas?
O candomblé é uma religião de matriz africana, que possui algumas nações e formas de praticar, mas seria um entendimento da espiritualidade a partir da filosofia africana. A umbanda tem além dos elementos do candomblé, o culto aos santos católicos e aos caboclos, que seria a contribuição indígena, digamos assim. A umbanda nasce no Brasil, e seria esse sincretismo de maneira estruturada numa religião. Evidentemente existem outras diferenças, mas acredito que essa seja a maior.
- Em 2003 foi promulgada uma lei que exigiu que as escolas brasileiras tenham em seu currículo o ensino de história e cultura afro-brasileira. Você percebe que isso ajudou na valorização dessa cultura? De que forma?
Temos alguns problemas relacionados a aplicação dessa lei. O primeiro é a resistência das unidades escolares para implantar a disciplina ou um momento adequado em alguma disciplina para esse conhecimento. O argumento mais utilizado é que os professores não se formam com o domínio dessa disciplina, o que em algum grau é verdade, mas não justifica. A UFBA, por exemplo, tem feito alguns esforços para oferecer a disciplina em seus cursos de licenciatura, o que já ajuda a suprir essa demanda, mas ainda vemos muitos casos em que professores utilizam esse espaço para reforçar estereótipos e alimentar essa cultura do ódio nas escolas. Acredito que valorização não é folclorizar nossa cultura através de apresentações em gincanas e feiras temáticas sem que aja um debate sobre como vivemos as culturas afro-brasileiras no nosso cotidiano. É até mesmo ampliar esse conceito de cultura, sair do lugar da comida típica, roupa típica, música típica, porque tudo que é típico, nesse contexto, reduz as nossas experiências a um lugar que não ajuda a vencer essas intolerâncias.
- O que você acha de toda a discussão acerca da apropriação cultural?
Geralmente esse tema vem à tona quando uma pessoa branca usa turbante ou trança, pelas vezes que me lembro. Percebo que o debate fica muito em torno de ser ou não ser apropriação cultural, mas poucos discutem porque reivindicamos isso. Eu uso dreads, e as pessoas na rua fazem uma pré-leitura a meu respeito, inclusive me associando a um monte de imagens mentais que elas têm. Os mesmos dreads em pessoas brancas são lidos de outra forma. Então o turbante e as tranças só são vistos como bonitos e aceitáveis quando estão em cabeças brancas, enquanto questionam o nosso uso que é legítimo e ancestral. Acho que apropriação cultural é mais sobre isso do que sobre querer exclusividade para usar as coisas. Parece ser uma discussão fútil por se tratar de um fator estético, mas diz respeito à negação de direitos, e isso é sério, não pode ser negligenciado, não pode ser tratado como mimimi. Então eu vejo como um problema esses usos “autorizados” quando nós, que somos “herdeiros” dessa história, não podemos usar nosso turbante sem que alguém olhe torto ou diga expressamente que não pode.
Romário Almeida é um produtor cultural baiano que trabalha com produção executiva de shows e exposições fotográficas, além de se dedicar aos registros de intervenções urbanas na cidade de Salvador. Na entrevista a seguir, ele deu a sua visão sobre a disseminação e preservação da cultura afro-brasileira, desde as festividades até a religião. E para concluir, uma fala esclarecedora acerca de toda a discussão sobre apropriação cultural.
ALMEIDA
ROMARIO