Trechos de: “O Deserto Branco: sobre Track of the Cat, de William A. Wellman”, por
Fernando Costa.
Aquilo que há de mítico nos westerns tem por pressuposto um tipo de
experimento social que materializa o impasse cuja origem não é outra senão um punhado de
ideias fora de lugar, transplantadas em contextos para os quais não foram de maneira alguma
concebidas. Afinal – parecem indagar os filmes do gênero –, o que resulta quando um modelo
de civilização (de matriz europeia, mas cultivado até a maturidade no solo fértil de 13 colônias
ao leste do Novo Mundo) com um certo ideal de justiça, uma particular noção de moral e um
meio determinado de vida, se desloca rumo à Fronteira Oeste, ao coração agreste do
continente, levado pelos pioneiros que marcham para as incertezas de um território bravio e
seus filhos, os herdeiros desse frágil projeto de sociedade ocidental que persevera contra uma
natureza atroz e apesar de suas contradições imanentes? Os melhores exemplares do western
oscilam entre as duas chaves implicadas nessa jornada: a do desbravamento e da conquista (da
natureza) como epopeia moderna e a do progresso (humano) como tragédia.
Há um conjunto particular de westerns em que tais polos de tensão (a
hostilidade natural e humanidade trágica) encontram algo como um paroxismo: são aqueles
cuja ação se desenrola em pleno inverno das apartadas regiões montanhosas ao centro e ao
noroeste dos EUA (ao invés das pradarias do sudoeste) e cuja paisagem é tomada quase que de
ponta a ponta pelo branco homogêneo da neve. Trata-se uma linhagem rara de filmes no
gênero, mas que o enriquecem com algumas realizações inestimáveis como Região do ódio
(The Far Country, 1954), de Anthony Mann, Quadrilha maldita (Day of the Outlaw, 1959), de
André De Toth, o italiano O vingador silencioso (Il grande silenzio, 1968) de Sergio Corbucci, e
esta magnífica anomalia sobre a qual nos debruçaremos em mais detalhe: Track of the Cat
(1954), de William A. Wellman.
Para além da semelhança superficial de suas locações gélidas, algumas
propriedades comuns bastante notáveis emergem quando assistimos a estes “westerns na
neve” como corpus mais ou menos coerente de filmes, até mesmo como um subgênero.
Primeiramente, todos eles tendem, por força das intempéries que os ambientam, ao
isolamento radical do espaço e dos personagens – centram-se em grupos pequenos, moradores
de alguma aldeia afastada, perdida em meio a um ambiente frio e inóspito confrontados por
alguma ameaça (em geral algum bando fora-da-lei) que enfrentam como podem, sozinhos,
com parcas reservas materiais a ainda mais escassa determinação moral. Disso se segue uma
segunda característica: o isolamento não é apenas geográfico, mas também político e jurídico;
nessas paragens longínquas o domínio se impõe pelas armas e pela força, as autoridades legais
são limitadas, interinas ou simplesmente corruptas. Como resultado, a justiça (ou o que é
moralmente certo pelos princípios fundadores aceitos coletivamente pelos cidadãos dessa
comunidade) é constantemente falseada pela ordem social, que se torna meramente uma lei
ilegítima outorgada pela violência ou pelo capital – este último é em especial evidente em
Região do ódio, no qual um individualista irredutível pouco se envolve em questões de
importância mais abrangente que seus próprios interesses egoísticos, e também no filme de
Corbucci, em que a lei é mantida por caçadores de recompensa e o único xerife disponível
(designado, diga-se, por simples interesses eleitoreiros) morre precisamente ao transpor a
margem limitada de ação que sua autoridade meramente nominal lhe imputa nesse contexto
opressor.