Catálogo Cine FAP Segundo Semestre de 2018 | Page 22
Trechos de: “A América Como Paixão”, por Héctor Soto
Íntegra: http://signododragao.blogspot.com/2007/11/amrica-como-paixo.html
Não resta a menor dúvida de que a obra de Michael Cimino parece
condenada a comparecer ante toda a sorte de inquisidores. Primeiramente com O Franco
Atirador , a mais desgarrrada e alucinante incursão do cinema norte-americano na
inquietante tragédia do Vietnã, ante setores da crítica que com notável percepção
imputaram ao filme acusações de racismo e de desonestidade política. Logo depois, com O
Portal do Paraíso , reflexão iluminada sobre o nascimento dos Estados Unidos a partir de
sua expansão para o Oeste, Cimino foi conduzido por produtores inseguros e insensíveis e
por outros setores da crítica desta vez influenciados não pela ideologia, como no caso
anterior, mas pela superficialidade. A versão original do filme foi retirada das salas e
mutilada brutalmente para atenuar sua densidade e reduzir sua extensão. Agora, com O
Ano do Dragão , o realizador deve enfrentar novos mal-entendidos pois outra vez as
acusações de racismo são reatualizadas e outra vez se apresenta o risco de que um filme
soberbo e de inspiração caudalosa acabe sendo prejudicado por preconceitos e
obstinações.
O tema de Michael Cimino é a América. América como utopia, como
realidade histórica, como trauma e como paixão individual. América como orgulho e dor.
Como sonho e choque. De algum modo, suas realizações estão atravessadas pelos pólos
desta consciência em luta, aquela que não se acalma com explicações consoladoras, e de
alguma forma seus filmes também obedecem o propósito de compôr hoje o friso
monumental da história norte-americana desde seus princípios até hoje, compreendendo
esta história como um contínuo desborde de sucessivas fronteiras políticas, culturais, éticas,
emocionais e psicológicas.
[...]O cinema de Cimino não pode ser compreendido à margem do Vietnã. O
Vietnã, como escreveu Marc Chevrie em Cahiers du Cinéma , é para Cimino um eixo não
menos fundamental do que foi a Guerra da Secessão para John Ford. Possivelmente neste
prisma da América de Reagan, empenhada como está em se esquecer de seu fracasso com
antídotos como Rambo , este cinema está um tanto desacreditado e coincide com o tipo de
bajulações e espetáculos patrioteiros complacentes que o mercado exige.
[...] O Ano do Dragão é um filme complexo que se define não pela veemência
de suas respostas mas pela compulsão inclemente de suas perguntas. Suas imagens
acusam uma fratura radical que nenhum adesivo, nenhuma mistificação política, nenhuma
estratégia de amnésia programada poderia reparar, entre outras razões, porque para os
Estados Unidos a idade da fé ficou para trás e com os anos 60 o sonho americano rachou
Poucos trabalhos cinematográficos iluminam melhor que o de Cimino as
raízes da América como nação produto do voluntarismo. "Em sua origem e durante todo o
período de sua formação - escreve Octavio Paz - os Estados Unidos eram uma escolha, não
uma fatalidade. São os filhos de um projeto de sociedade mais do que de uma sociedade e,
nesse sentido, se situa antes da história". O cinema de Ford, o velho western, também se
situava ali. Sua base era o utopia e o mito. O cinema de Cimino, entretanto, é esse da
América dentro da história, aquela que o país ingressou com grandeza, mas também com
dor.