Catálogo Cine FAP Segundo Semestre de 2017 | Page 24

[...] Em My Brother ’ s Wedding , provavelmente o filme mais bem conseguido da sua filmografia , acompanhamos esse corre-corre que é a vida de Pierce Mundy . Todo o filme se desenrola num infatigável movimento de vai-e-vem representado pro-filmicamente nas correrias de Pierce na companhia do seu amigo , recentemente saído da prisão , Soldier pelas ruas declivadas de LA . Ele corre , salta , empurra o amigo e o amigo empurra-o a ele . Há uma liberdade vadia nos movimentos que significa uma coisa para os seus pais e a sociedade em geral : Pierce , com 30 anos , solteiro e a viver na cada dos pais , ainda não cresceu . Pelo contrário , o seu irmão está-lhe nos antípodas : um advogado bem sucedido que vai casar com uma mulher de famílias ricas .
Pierce é o pivô entre a classe baixa da comunidade negra onde vive e a classe alta representada pela família da sua futura cunhada . Ao mesmo tempo , ele adora o seu amigo delinquente . O final do filme leva esta “ divisão ” até às últimas consequências . Burnett produz uma tempestade perfeita na vida do protagonista , quando este , perante uma encruzilhada tão física e temporal quanto puramente moral , é obrigado a fazer uma escolha . A pressão social e racial converte-se assim numa muito cinética forma de stress . A montagem alternada e a last-minute rescue griffithianas ganham , assim , um novo sentido . Quase apetece dizer : implodem ! Curioso que assim seja . Na conversa que tive com Burnett foi interessante constatar como The Birth of a Nation ( O Nascimento de uma Nação , 1915 ) não deixa de activar no meu entrevistado poderosas perplexidades . A raiz do estilo clássico de storytelling é um libelo racista que exalta a missão dos cavaleiros brancos do Ku Klux Klan ao mesmo tempo que procura caracterizar a Reconstrução da América como um período de degradante capitulação histórica . A capitulação à trapaceira e preguiçosa população negra .
[...] De sono turbulento tem estado Burnett . Ainda bem que não dormiste muito em Tui , caro Charles . O teu sono nos filmes tem “ anger ”, mas não tem “ hate ”. Contudo , mais tarde , ao jantar , contaste-me , bem mais desperto , como te inquieta o actual estado das coisas no teu país . Viste o discurso de Danny Glover no rally de Bernie Sanders ? Não vi , não . Claro que não , mal tens tido tempo para dormir . Dormir com “ anger ” ou sem “ anger ”. Nem uma siestazinha ! Mas , diz-me , vais votar Bernie ? Sim , vou … Disseste-me nessa noite que acompanhar os media a propósito da campanha à nomeação presidencial se tornou numa fixação insalubre para ti . Falas de uma realidade escondida dos holofotes mediáticos . Populações negras erradicadas quando ninguém está a ver . “ Eu sei que parece paranóico , mas …” E a ansiedade – o medo , apetece dizer – toma conta de ti . És incómodo ou estás incomodado e não te conformas ? O medo toma conta de ti , dizia , mas também toma conta de mim que te ouvia a falar ao mesmo tempo que procurava por mais vestígios de paisagens no teu rosto e na tua voz . O jovem rosto de um septuagenário . Ainda está a tempo de encarar tudo isto naquele país onde as imagens brilham . É lá que os sonhos devem ser sonhados . Na sala escura do cinema , quero eu dizer . Voltemos para lá que já se faz tarde .