[...] Em My Brother’ s Wedding, provavelmente o filme mais bem conseguido da sua filmografia, acompanhamos esse corre-corre que é a vida de Pierce Mundy. Todo o filme se desenrola num infatigável movimento de vai-e-vem representado pro-filmicamente nas correrias de Pierce na companhia do seu amigo, recentemente saído da prisão, Soldier pelas ruas declivadas de LA. Ele corre, salta, empurra o amigo e o amigo empurra-o a ele. Há uma liberdade vadia nos movimentos que significa uma coisa para os seus pais e a sociedade em geral: Pierce, com 30 anos, solteiro e a viver na cada dos pais, ainda não cresceu. Pelo contrário, o seu irmão está-lhe nos antípodas: um advogado bem sucedido que vai casar com uma mulher de famílias ricas.
Pierce é o pivô entre a classe baixa da comunidade negra onde vive e a classe alta representada pela família da sua futura cunhada. Ao mesmo tempo, ele adora o seu amigo delinquente. O final do filme leva esta“ divisão” até às últimas consequências. Burnett produz uma tempestade perfeita na vida do protagonista, quando este, perante uma encruzilhada tão física e temporal quanto puramente moral, é obrigado a fazer uma escolha. A pressão social e racial converte-se assim numa muito cinética forma de stress. A montagem alternada e a last-minute rescue griffithianas ganham, assim, um novo sentido. Quase apetece dizer: implodem! Curioso que assim seja. Na conversa que tive com Burnett foi interessante constatar como The Birth of a Nation( O Nascimento de uma Nação, 1915) não deixa de activar no meu entrevistado poderosas perplexidades. A raiz do estilo clássico de storytelling é um libelo racista que exalta a missão dos cavaleiros brancos do Ku Klux Klan ao mesmo tempo que procura caracterizar a Reconstrução da América como um período de degradante capitulação histórica. A capitulação à trapaceira e preguiçosa população negra.
[...] De sono turbulento tem estado Burnett. Ainda bem que não dormiste muito em Tui, caro Charles. O teu sono nos filmes tem“ anger”, mas não tem“ hate”. Contudo, mais tarde, ao jantar, contaste-me, bem mais desperto, como te inquieta o actual estado das coisas no teu país. Viste o discurso de Danny Glover no rally de Bernie Sanders? Não vi, não. Claro que não, mal tens tido tempo para dormir. Dormir com“ anger” ou sem“ anger”. Nem uma siestazinha! Mas, diz-me, vais votar Bernie? Sim, vou … Disseste-me nessa noite que acompanhar os media a propósito da campanha à nomeação presidencial se tornou numa fixação insalubre para ti. Falas de uma realidade escondida dos holofotes mediáticos. Populações negras erradicadas quando ninguém está a ver.“ Eu sei que parece paranóico, mas …” E a ansiedade – o medo, apetece dizer – toma conta de ti. És incómodo ou estás incomodado e não te conformas? O medo toma conta de ti, dizia, mas também toma conta de mim que te ouvia a falar ao mesmo tempo que procurava por mais vestígios de paisagens no teu rosto e na tua voz. O jovem rosto de um septuagenário. Ainda está a tempo de encarar tudo isto naquele país onde as imagens brilham. É lá que os sonhos devem ser sonhados. Na sala escura do cinema, quero eu dizer. Voltemos para lá que já se faz tarde.