Catálogo Cine FAP Segundo Semestre de 2017 | Page 23
Trechos de: “Charles Burnett: Uma Inegociável Independência”, por Luís Mendonça.
Íntegra:
http://www.apaladewalsh.com/2016/04/charles-burnett-uma-inegociavel-
independencia/
[...]O problema da “negritude” (blackness) é evidentemente central na obra de
Burnett, mas o que no seu cinema incomoda – para retomar o tal adjectivo encontrado pelos
programadores do festival – é o facto de este, em contra-corrente com muito do cinema
politicamente engajado que se fizera até então, não usar a questão da raça como uma
bandeira. Na realidade, ousaria dizer que em Burnett, como noutro cineasta seu amigo e com
quem colaborou de muito perto, Billy Woodberry, as questões do homem negro são, antes de
mais – e muitas vezes, “depois de tudo” -, questões de um homem ponto. O “homem ponto”
não é um homem fechado, definitivo, “retórico”, mas um homem aberto, imperfeito, que
respira o ar que todos os outros homens respiram. Burnett não faz “guerrilla cinema” e o
seu statement mais audível é que não há statement algum além daquele que não pára de nos
lembrar que “um homem é um homem é um homem”. As suas personagens enfrentam-se
consigo, com as suas circunstâncias, mas não carregam fardos históricos, não debitam
discursos de ódio com destinatário certo na ponta da língua, nem agitam “bandeiras” 24 horas
por dia.
A cor da pele não importa? Claro que importa. Infelizmente importa e não deixa
de importar na América de hoje, mas Burnett é um humanista dentro da melhor tradição neo-
realista. A câmara encontra o homem e segue-o. Se o seu dia-a-dia lhe oferece uma série de
quadros corriqueiros que dizem aparentemente pouco sobre os séculos de opressão da
população negra se calhar é porque não é preciso dizer nada quando a vida revela nos
pequenos gestos o tudo que a própria História ainda não tornou legível. Mas que ninguém se
iluda: os filmes de Burnett são minuciosa e criteriosamente construídos. É uma
espontaneidade preparada, atenta ao lugar de cada gesto, como se comprova neste ensaio
audiovisual de Adrian Martin e Cristina Álvarez López. Os seus filmes são “arte a imitar a
vida”, como me chegou a explicar a propósito de Killer of Sheep. A narrativa espontânea,
mesmo assim, é uma narrativa. Mesmo que completamente avessa ao plot hollywoodesco.
[...]Burnett usou a sua câmara com o mesmo intuito, mas fê-lo empurrado pela
urgência de não deixar passar em branco as humilhações por que ele e os seus irmãos negros
passaram desde as carteiras da escola. Ainda se sente mágoa nas suas palavras quando este
conta o dia em que o seu professor de liceu resolveu dizer a cada aluno da turma o que o futuro
lhes reservava. O professor sentenciou: ele não era incerto para o jovem Burnett, muito pelo
contrário, ele era tão certo quanto o tom escuro da sua pele. Burnett ia ser um falhado; mais
um negro “sem futuro” que passaria por aquela sala de aula, por aquela escola, por aquele
bairro, por aquela cidade… Burnett saiu dessa aula com a certeza de que tinha de fazer alguma
coisa, algo que desse a volta à premonição do seu professor. Não era a raiva que o movia, mas a
necessidade de se afirmar como uma pessoa humana que não está pronta a ver os seus sonhos
marcados – como o gado e o ferro em brasa – pela estúpida evidência do seu tom de pele.
Muito antes de filmar Killer of Sheep, Burnett afirmava para si uma certeza quanto ao futuro:
não mais o homem negro poderia ser tratado como “carneirada” na fila de espera para um
futuro privado de sonhos.