Catálogo Cine FAP Primeiro Semestre de 2018 | Page 10
Trechos de: “A Morta-Viva”, por Eduardo Savella.
Íntegra: https://letterboxd.com/eduardo_savella/film/i-walked-with-a-zombie/2/
Primeiro conflito: enfermeira Betsy/Paul Holland: a beleza do mundo contra a
destruição da morte, poesia da luz e luz da putrescência. Segundo conflito:
materialismo/religião, ou melhor, razão/mistério, estrangeiros/nativos, lógica/indefinição,
interpenetração dos estados: o cocheiro se refere à figura de proa, um São Sebastião
assustador, sem defini-lo como morto ou vivo; peculiaridade da cultura local para a enfermeira,
índice de mistério no filme, "as sombras que a luz produz" (Night of the Demon). A criada
Alma chora pelo nascimento de uma criança: segunda peculiaridade para a enfermeira, indício
tenebroso de um passado terrível de medo, horror e miséria. Horror nunca, nunca mostrado:
as amas brincam com o bebê, o ritual vodou contém um conhecimento profundo e, por isso,
dignidade de todas as figuras; o índice do horror, pois, sempre reduzido ao mínimo, sempre
sugerido, ou estampado no rosto de São Sebastião, trespassado de flechas, que preside o final
do filme.
[...]Ambiguidade sempre absoluta do final: a ação fatal perpetrada por Rand foi o
fim trágico do teatro burguês das paixões, ou arrebatamento do ritual vodou? Carrefour
estendera os braços como parte do mesmo ritual ou para impedir Rand? Como notou um
amigo, a montagem paralela aqui tem sentido oposto ao de causa e efeito: ela é o
estabelecimento de uma dúvida. Por que a mãe Holland contradisse a si mesma, defendendo a
medicina empírica e, depois, a magia lúgubre? Para impedir a investigação policial? Indício de
loucura, ela mesma? Revelação de verdade, ocultada antes, mas porque então ocultar a crença
também de Betsy, na cena da barraca, de modo tão convincente e "tranquilizador"? Porque Sir
Lancelot insiste sobrenatural na canção? Jessica está mesmo morta-viva (ela não sangra, mas o
coração bate)?
Infalível mistério, perene tristeza. Voltamos ao começo e encontramos a
enfermeira: ela é a narradora e, mesmo assim, não acessamos o fundo de sua consciência: há
sempre uma névoa que nos tolhe em seu olhar, cujo fundo nos é fechado. Índice de mistério em
Tourneur (o contrário: o olhar aberto - compreendemos tudo, na medida em que tudo quer
ocultar - de Jean Peters em Anne of the Indies). Carrefour pode ser a inversão desse índice
(inconsciência cujo fundo nos é igualmente brumoso), Jessica sua inexistência. "Tudo começou
de modo muito normal". O que impele Betsy à ilha de São Sebastião, que ela passa a amar,
assim como ao dono da casa, de modo tão rápido e infalível? Como não vemos seu amor senão
por suas palavras? E porque, no final, ela desaparece em benefício de um narrador anônimo,
dono de uma enigmática prece cristã para Rand, que atribui toda a culpa (mulher perversa,
assim como esclareceu pouco antes, de outro modo, a Sra. Rand) para a vítima Jessica, esposa
morta-viva? O teatro familiar, o menor dos mistérios, resta concisamente esclarecido.