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Trechos do texto: Da impureza como categoria política por Christofer Pallú e Fernando Costa Homo homini lupus: O Tempo do Lobo [...] O precursor natural de O Tempo do Lobo é, sem dúvida, Exército de Extermínio ( The Crazies , 1973), no qual uma doença acidentalmente disseminada num acidente militar inicia uma epidemia de “insanieaee” entre os habitantes de uma comunidade rural. Superficialmente, a “impureza” está nos infectados, mas a perspicácia política de Romero o conduz a um insight ainda mais proveitoso: quando um estado de exceção é declarado e os militares intervêm, gradativamente vemos as linhas entre sanidade e loucura serem borradas – qualquer um, infectado ou não, se torna suscetível ao comportamento irracional ou (ainda mais extremo) à atribuição de loucura por parte de outros. A impureza passa de indivíduos desviantes (exceções à norma) para o contexto em que tais atitudes de loucura se tornam inevitáveis até ao mais racional dos indivíduos (o estado de exceção em que a insanidade é a norma). Ao criar o monstro sem máscara de monstro, Romero antecipa o experimento de Haneke no horror. Há em O Tempo do Lobo uma atmosfera de sombras e incertezas, construída pela fotografia em chiaroscuro com um uso muito hábil da iluminação natural, sugere que toda sorte de perigo pode repentinamente emanar do fora de campo. Por fim, há uma metáfora central intrigante no filme que identifica homens a lobos. Em dois momentos, um personagem faz menção ao fato de que, após a catástrofe desconhecida que trouxe o colapso, cães domésticos famintos repentinamente se voltaram contra seus donos – este mesmo personagem, após sacrificar de maneira totalmente desnecessária uma cabra que fornecia leite às crianças do grupo, é chamado de “cão”. Animais domesticados agindo como predadores selvagens; homens civilizados retornando à barbárie – homo homini lupus . Se há uma impureza, no sentido de recalcitrância categorial explicado acima, introduzida por Haneke de forma muito sutil em seu filme está precisamente em estabelecer tal relação: fica clara sua intenção de suscitar um tipo de horror muito específico aos europeus civilizados que assistem a uma distância condescendente a catástrofes alheias. [ ...] O grande mérito de O Tempo do Lobo consiste em nos lembrar que o horror não existe apenas na subversão de nossa compreensão científica de mundo por um monstro intruso, mas também no colapso da forma de organização social que lhe é correspondente. Ao subtrair a presença explícita de monstros ou da causa da catástrofe, Haneke traz à nossa consciência esse fato, o de que o horror deriva não apenas de uma subversão da ordem natural, de nossas categorias naturais ( monstros ), mas de nossas categorias políticas (estado de exceção, cenários de deterioração social, etc).