Campo Prático, caso do Idoso - afeto. 1 | Page 16

Você sente fome de que? Comida De Alma

Você sente fome de que?

“Comida de alma é aquela que consola, que escorre garganta abaixo quase sem precisar ser mastigada, na hora de dor, de depressão, de tristeza pequena. Não é, com certeza, um leitão pururuca, nem um menu nouvelle seguido à risca. Dá segurança, enche o estômago, conforta a alma, lembra a infância e o costume. É a canja da mãe judia, panaceia sagrada a resolver os problemas de náusea existencial. O macarrão cabelo de anjo cozido mole e passado na manteiga. O caldo de galinha gelatinoso, tomado às colheradas. São as sopas. O leite quente com canela, o arroz doce, os ovos nevados, a banana cozida na casca, as gelatinas, o pudim de leite. Nora Ephron, autora de A difícil arte de amar, com o casamento acabado, grávida, enjoada, traída, vota pelo consolo da batata: "Nada como um bom purê quando se está deprimido. Nada como ir para a cama com um prato fundo de purê de batata já saturado de manteiga e metodicamente ir adicionando mais uma fatia fina de manteiga a cada garfada". Comida de alma tem de ser neutra. Sorvete é comida de alma? Não é. Tem um pique gelado que a tristeza não suporta. A temperatura deve estar entre ambiente e morna. Chocolate vale? Não, nem pensar. É sexy, sedutor, pressupõe prazer e culpa. Tudo tem de ser especial na comida de alma. A tia Léonie ,de Proust, comia seus ovos com creme em pratos rasos, com desenhos e legendas. Punha os óculos e decifrava contente: " Ali Babá e os quarenta ladrões", ou "Aladim e a lâmpada maravilhosa". O mingau de aveia ou fubá pode ser em prato fundo, o quadrado de manteiga se derretendo por cima. O leite em boa caneca grossa, o chá em xícara inglesa florida, e, para casos extremos, a mamadeira, é claro. A comida, de preferência, deve ser bebida aos goles ou tomada de colher. A faca é quase sempre supérflua. Um livro português trata do assunto, mostrando que a preocupação com comidas de alma vem de longe. É O Cozinheiro Indispensável (Porto, 1844), que traz um subtitulo enigmático: Guia prático dos enfermos pobres, dos doentes ricos e dos convalescentes remediados. Dá receitas como o caldo confortativo, uma papinha pastosa, de se comer com lágrimas nos olhos...”

Os hábitos responsáveis por automatismos de comportamento precisam ser identificados por quem os ensina e por quem os aprende. O prazer e a satisfação proporcionados pelo alimento estão sempre em construção, apresentando evoluções para uma nova aprendizagem e, consequentemente, uma vida saudável. Saudável esse que consiste em qualidade, bem-estar, como uma forma de se envolver as fragilidades e ao mesmo tempo as potencialidades dos idosos. E todos os significados que a palavras trás.

Como diz Freire (2005, p. 47), “o ensino criou possibilidades para a sua própria produção ou construção de saber”. E é exatamente com essa sensação que expresso os momentos divididos neste campo prático, onde a remodelação da realidade teve muito mais a aprender do que ensinar. Onde aprendi como ser humano que, antes de querer ensinar qualquer coisa, é preciso sentir. Sentir a energia, sentir o calor, sentir o ouvir, sentir o falar. É preciso sensibilidade e humildade para tocar no mundo do outro, no espaço, na ferida, nos anseios e perspectivas.

A educação nos leva ao espaço onde podemos tocar o outro através de práticas saudáveis, onde o alimento está inserido e pode ser o ponto central ou não. Nessa prática o alimento no qual falamos foi o alimento da alma, aquele que antes mesmo de se pensar em comer ele já se transfigurava nos rostos, olhares, falas e gestos. Os saberes e sentimentos contidos naquele território exalavam a necessidade da expressão. Foi indispensável e necessário reconhecer e valorizar com o ouvir, com o toque, com a presença.

A urgência deles conosco era de fato necessária e não os momentos darem certo para a gente conseguisse que nosso objetivo fosse concluído. Foi importante desconstruir o imaginado, o estipulado, o enumerado. Foi necessário acima de tudo a entrega, pois como diz Freire (1996, p.94), “Me movo como educador porque, primeiro, me movo como gente”. E a gente cresce quando aprende, a gente aprende sentindo e fazendo, cresce de novo, se reescreve, ajusta os olhares e enriquece. A transformação é notória, é inexpressível.

E a música apareceu como o ponto central, ela deu resignificado a palavra afeto. Ela empoderou os idosos e o momento. Ela fez aquele território se tornar o quintal de casa em um dia de festa. Ele é mostrou uma grande mediadora e amiga. Foi um abraço de pai e um colo de mãe.

Ela tratou a comensalidade como um café da manhã compartilhado, onde apesar dos idosos não conseguirem ajudar um ao outro, nós conseguimos ajuda-los e com isso não deixamos de expressar um momento de partilha. Então a alimentação ali acontecia muito além de uma necessidade fisiológica, ela acontecia como uma troca de afeto, como uma comunicação, como um eu estou aqui e valorizo você.

Na alimentação humana, natureza e cultura se encontram, pois se comer é uma necessidade vital, quando e com quem se come também são aspectos que fazem parte de um sistema que implica atribuição de significados ao ato alimentar (MACIEL, 2001).

O comportamento alimentar do homem não se diferenciou do biológico apenas pela invenção da cozinha, mas também pela comensalidade, ou seja, pela função social das refeições. A cocção dos alimentos, dessa forma, adquiriu enorme importância nesse plano, por favorecer as interações sociais (MOREIRA, 2010).

Assim também, Maciel (2001) ressalta que o mais importante na alimentação humana é o com quem comemos, pois envolve partilha e comensalidade, transformando o ato alimentar, de biológico em social. O “comer juntos” reforça a união da família ou grupo, pois além de partilhar a comida, partilham-se as sensações.

O vivenciado tem como identidade a gratidão, principalmente por criar novos significados e identidade para um grupo que necessita tanto de amor. É sobretudo a partilha que importa, mais do que a própria composição da refeição (JOANNÈS, 1998).