BIBLION MAGAZINE EDIÇÃO INTERATIVA #4 / JUL-AGO 2017 | Page 21

B I B L I O N - R E V I S TA D E L I V R O S , L I V R O S E M R E V I S TA Ouvi o tilintar do dinheiro e depois um grito feminino que se misturava com o clamor das gargalhadas da multidão. A mulher en- ganada saltou do seu lugar e correu atrás do homem que a intrujou, mas os outros imediatamente cerraram fileiras e expulsaram-na... Assim, incidente após incidente, a fila ficou reduzida a propor- ções aceitáveis, antes de o autocarro chegar. Era um veículo maravilhoso, todo iluminado com luzes dou- radas, heraldicamente colorido. O próprio Motorista parecia cheio de luz e usava apenas uma mão para conduzir. Agitava a outra mão junto ao rosto, como se quisesse afastar o vapor gorduroso da chuva. Ouviu-se um resmungo na fila quando ele chegou: — Parece que andou a divertir-se, não acham?... Aposto que a vida lhe corre bem... Porque é que ele não se comporta de forma natural?... Considera-se demasiado bom para olhar para nós... Quem é que ele julga que é?... Tanto brilho e espalhafato, que desperdício. Porque é que não gastam o dinheiro na sua própria casa?... Francamente! Que vontade de lhe dar nas orelhas! Confesso que não conseguia ver nada no aspeto do Motorista que justificasse todas estas críticas, a não ser o seu ar autoritário e a aparente vontade de fazer o seu trabalho. Os meus companheiros de viagem engalfinharam-se para entrar no autocarro, embora houvesse lugares suficientes para todos. Fui o último a entrar. O autocarro tinha metade da lotação preenchida. Escolhi um lugar na retaguarda, bem longe dos outros passageiros. Mas um jovem desgrenhado veio sentar-se mesmo ao meu lado. Assim que se acomodou, partimos. — Pensei que não se importaria que me sentasse aqui, pois reparei que tem a mesma impressão que eu a respeito desta gente — disse o jovem. — Não percebo por que carga de água insistem em vir. Não vão gostar nada quando chegarmos ao destino. Estariam muito mais confortáveis em casa. Mas para nós, é diferente. — Eles gostam deste lugar? — Perguntei. — Como gostariam de qualquer outra coisa — respondeu. — Há cinemas, lojas de comércio local, anúncios e tudo o que quiserem. A espantosa falta de todo o tipo de vida intelectual não os preocupa. Assim que cheguei, percebi que havia algo errado. Devia ter apanhado o primeiro autocarro, mas perdi tempo a tentar despertar as pessoas daqui. Encontrei alguns amigos que já conhe- cia e procurei formar um pequeno círculo, mas todos eles pareciam ter descido ao nível do ambiente que os rodeia. Antesmesmo daqui chegar tive algumas dúvidas a respeito de um homem como Cyril Blellow.1 Sempre achei que era alguém com segundas intenções. Mas pelo menos era inteligente. Podíamos ouvir algumas das suas críticas valiosas, embora fosse um fracasso no que diz respeito a criatividade. Agora parece que não lhe restou nada, a não ser a sua presunção… mas espere um pouco, importa-se de ver por si próprio? Percebendo, com um arrepio, que ele retirava do bolso um volumoso maço de papel dactilografado, murmurei uma desculpa, dizendo que não tinha trazido os óculos e exclamei: — Olhe! Levantámos voo! Era verdade. Algumas centenas de metros abaixo de nós, já meio escondidos na chuva e no nevoeiro, viam-se os telhados molhados da cidade, espalhando-se sem interrupção, até perder de vista. E XC E R TO E X T R A Í DO D E A VIAGEM, DE C. S. LEWIS, PUBLICADO POR LOGOS EDIÇÕES, LISBOA www.biblion.pt 21