B I B L I O N - R E V I S TA D E L I V R O S , L I V R O S E M R E V I S TA
Ouvi o tilintar do dinheiro e depois um grito feminino que se
misturava com o clamor das gargalhadas da multidão. A mulher en-
ganada saltou do seu lugar e correu atrás do homem que a intrujou,
mas os outros imediatamente cerraram fileiras e expulsaram-na...
Assim, incidente após incidente, a fila ficou reduzida a propor-
ções aceitáveis, antes de o autocarro chegar.
Era um veículo maravilhoso, todo iluminado com luzes dou-
radas, heraldicamente colorido. O próprio Motorista parecia cheio
de luz e usava apenas uma mão para conduzir. Agitava a outra
mão junto ao rosto, como se quisesse afastar o vapor gorduroso da
chuva. Ouviu-se um resmungo na fila quando ele chegou:
— Parece que andou a divertir-se, não acham?... Aposto que a
vida lhe corre bem... Porque é que ele não se comporta de forma
natural?... Considera-se demasiado bom para olhar para nós...
Quem é que ele julga que é?... Tanto brilho e espalhafato, que
desperdício. Porque é que não gastam o dinheiro na sua própria
casa?... Francamente! Que vontade de lhe dar nas orelhas!
Confesso que não conseguia ver nada no aspeto do Motorista
que justificasse todas estas críticas, a não ser o seu ar autoritário e
a aparente vontade de fazer o seu trabalho.
Os meus companheiros de viagem engalfinharam-se para entrar
no autocarro, embora houvesse lugares suficientes para todos. Fui
o último a entrar. O autocarro tinha metade da lotação preenchida.
Escolhi um lugar na retaguarda, bem longe dos outros passageiros.
Mas um jovem desgrenhado veio sentar-se mesmo ao meu lado.
Assim que se acomodou, partimos.
— Pensei que não se importaria que me sentasse aqui, pois
reparei que tem a mesma impressão que eu a respeito desta gente
— disse o jovem. — Não percebo por que carga de água insistem em
vir. Não vão gostar nada quando chegarmos ao destino. Estariam
muito mais confortáveis em casa. Mas para nós, é diferente.
— Eles gostam deste lugar? — Perguntei.
— Como gostariam de qualquer outra coisa — respondeu.
— Há cinemas, lojas de comércio local, anúncios e tudo o que
quiserem. A espantosa falta de todo o tipo de vida intelectual não
os preocupa. Assim que cheguei, percebi que havia algo errado.
Devia ter apanhado o primeiro autocarro, mas perdi tempo a tentar
despertar as pessoas daqui. Encontrei alguns amigos que já conhe-
cia e procurei formar um pequeno círculo, mas todos eles pareciam
ter descido ao nível do ambiente que os rodeia. Antesmesmo daqui
chegar tive algumas dúvidas a respeito de um homem como Cyril
Blellow.1 Sempre achei que era alguém com segundas intenções.
Mas pelo menos era inteligente. Podíamos ouvir algumas das suas
críticas valiosas, embora fosse um fracasso no que diz respeito a
criatividade. Agora parece que não lhe restou nada, a não ser a
sua presunção… mas espere um pouco, importa-se de ver por si
próprio?
Percebendo, com um arrepio, que ele retirava do bolso um
volumoso maço de papel dactilografado, murmurei uma desculpa,
dizendo que não tinha trazido os óculos e exclamei:
— Olhe! Levantámos voo!
Era verdade. Algumas centenas de metros abaixo de nós, já
meio escondidos na chuva e no nevoeiro, viam-se os telhados
molhados da cidade, espalhando-se sem interrupção, até perder
de vista.
E XC E R TO E X T R A Í DO D E A VIAGEM, DE C. S. LEWIS, PUBLICADO POR LOGOS EDIÇÕES, LISBOA
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