As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo | Page 34

A revolta ignorou parlamentares, sindicatos e partidos políticos, deixando evidente que se dirigia – por vias transversas, sem coordenação ou clareza programática – contra o governo representativo tal qual estruturado no Brasil. Não se dirigiu contra um governo em particular, mas contra todos os governos: contra o sistema político, seus atores, seus procedimentos e sua cultura. As manifestações foram dispersas e multicêntricas, refratárias a lideranças fixas e sem maior dimensão organizacional. Sua forma explosiva, espasmódica e reticular anunciou a hipermodernidade das ruas. Não perderam contundência por causa disso, mas tiveram maior dificuldade para ganhar estabilidade e permanecer ativas. O Brasil conheceu em junho a face mais visível de uma crise de representação e de legitimidade – uma crise da política – que vinha de longe e permanecera relativamente adormecida até então. Uma certeza tornou-se consensual a partir dos protestos: “a representação política ruiu. Não é de hoje, mas somente agora o escárnio das esquinas, a repulsa ao mundo político que se limitava às conversas cotidianas ganhou corpo e visibilidade, tanto quanto ganharam visibilidade e reconhecimento milhões de cidadãos antes unidos pelo ressentimento, sentindo-se diariamente desrespeitados pelas autoridades, pelas instituições, pelo transporte público, pelas condições da saúde e da educação. O colapso da representação vinha sendo coberto pela competência do executivo federal, por políticas públicas exitosas, pelo carisma de Lula. (...) O colapso da representação política significa o divórcio entre o Estado e a sociedade” (SOARES, 2013). As vozes das ruas deixaram patente que a sociedade brasileira está cansada do modo como a política vem sendo exercida no país. O cansaço deita raízes nos desdobramentos do processo de democratização com que se superou a ditadura militar nos anos 1980. O primeiro presidente eleito por voto popular, Collor de 32 As ruas e a democracia