problemas crônicos
É fácil se encantar com tudo que é de constituição humilde. Um pobre diabo que perdeu tudo e agora jaz sem teto e sem almoço, um cão vadio e esfomeado abandonado à própria sorte, a errar pelas ruas do desamparo. Tudo aquilo que nos trás a íntima e alentadora sensação de apreço desperta em nós o instinto primitivo de grupo. “Poderia ser alguém de minha família, ali naquela sarjeta, a pedir esmolas, oras!”, você diz. “E se fosse tua mãe?” ou “e se fosse eu mesmo?”, é a ideia que nos trepa ao cérebro e ali faz sua morada. Com efeito, este último é o que mais comparece ao balcão de consultas da alma. Sem que se aperceba, o sujeito vê-se na rua, caneca na mão, sórdidos andrajos e as tripas a roer-lhe por dentro de fome. É uma identificação imediata, o colocar-se no lugar do outro; a transmutação das matérias que faz com que o cidadão bem nutrido de classe média transfira todo seu ectoplasma para o morador do terceiro degrau de quem vai da igreja central. Sem dúvida é um penetrar de muitas camadas morais essa abnegação.
Todavia, não só dos mendicantes é feito este sentimento, mas de todo aquele que de alguma forma vem a padecer nas mãos de um senhor tirano; seja ele um comandante de um campo de concentração nazista, o homem que apertou o botão para dizimar crianças sírias com armas químicas ou mesmo as intempéries do destino. E está você daí a perguntar: E o que tem todos estes entulhos com isso? E eu lhe respondo: São todos parte de um único e melindroso mecanismo que faz com que o ser oprimido torne-se agradável e obsequioso a nossos olhos. Porque, afinal, é muito mais atraente um gentil e singelo sorriso que uma cara carrancuda. Ninguém sente o coração se encher de pruridos por um sujeito obscuro, acintoso ou de feitios aviltados. Mas àquele outro, singelo, franco, natural, toda a cara escancarada, este sim, este é merecedor de nossa confiança e consideração. É nesse locus que se insere a Literatura de Cordel. Espere que vais compreender. O estilo literário cordelista germina no Brasil particularmente na região Nordeste, e não é impossível associá-la a toda cultura e tradições nordestinas. Não é só impossível como é imperioso relacionar uma com a outra. Explico-me: A feição nevrálgica da literatura cordelista é justamente o indivíduo nordestino. Dele se subtrai a inspiração para suas rimas. É ele o tutano das histórias declamadas e a veia mestra sua vida, seu cotidiano e seu padecer. A seca do Nordeste brasileiro é a perfeita metáfora para vida de provações a que esses homens se submetem: Ela representa a escassez, o solo ressequido e improdutivo, a miséria, a sede e a fome. Todo esse cotidiano é narrado nos versos do Cordel. E este universo nos remete ao universo de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, na medida em que este não é o nordeste dos engravatados que escrevem do conforto de seus gabinetes sobre um sertão que nunca viram. Em Grande Sertão a visão é do próprio sujeito, aquele que sente na carne tudo aquilo que declara; o lombo queimado do sol, as querelas de peixeira dos cabras, a falta de água, as histórias que transmitem de geração à geração, a religiosidade, o folclore. Isso tudo vivido na pele de um Riobaldo que Guimarães cantou em prosa, mas bem podia ser qualquer “João” nos folhetos do Cordel. E é aí que surge toda a simpatia citada no início desse texto. A sinceridade, a subserviência e a entrega com que são declamados os versos cordelistas despertam automaticamente o nosso apreço a tais inclinações de humildade. E ao transpor ao papel toda sua vivência o nordestino eterniza seu modo de viver; e, o mais importante, ele estampa ao mundo sua dor e a importância de não ser esquecido. Nos varais do nosso nordeste estão dependurados para sempre a angústia e o desalento do povo da caatinga e estampado nas magníficas xilogravuras os olhos tristes e gentis que nos tocam ao coração.
Por fim, disse eu que a humildade e a lisura de espírito provocam em nós um sentimento imediato de amizade e empatia. Corrijo-me dizendo que nem todos os homens possuem essa capacidade empática ou de identificação. Entretanto, nem tudo está perdido. No cerne de alguns homens ainda subsiste o gérmen do altruísmo. Porque, afinal, todos nós somos opressos de alguém, e, ao mesmo tempo, opressores. Lobos do homem.
25 A Capitolina
Por Jeff de Paula
ÉA
NOS VARAIS DO DISATINO
ELES ESTÃO