Escrituras 12
Não era esse o ca- so quando o autor escreveu, e muito menos quando a história em si aconteceu. [...] Se esse ar miraculoso for perdoado, o leitor não encontrará nada mais que seja indigno de sua atenção. Permitam a possibilidade dos fatos, e todos os atores se comportarão como pessoas se comportariam nas devidas situações (WALPOLE, 1996).
Ann Radcliffe nos deixou uma coletânea de correspondências que, inicialmente, não foram destinadas ao público mas que passaram por um processo de arrumação e seleção. Um determinado grupo de escritos da autora compõe o “On The Supernatural in Poetry”, que pode ser caracterizado como um ensaio crítico. Nesse documento, dois personagens, Mr. S. e W., discutem sobre a obra de Shakespeare. Em meio a comentá- rios bastante interessantes, Radcliffe insere algumas ideias sobre a utilização de ele- mentos sobrenaturais em um texto literário:
[...] em se tratando de superstição popular, está certo usar noções corriqueiras e vestir suas bruxas como velhas senhoras da cidade na qual devem ter aparecido. Desde que tais noções nos preparem para a surpresa que o poeta deseja provo- car, concordo; mas para esse objetivo, tudo o que for familiar e comum deve ser evitado. Então o que acontece quando cenas violentas de terror nos chocam demasia- damente por aparecerem em momentos de alegria, como, por exemplo, na cena do ban- quete em Macbeth? Elas chocam, nesse caso, pela força do contraste, mas o efeito, apesar de forte, é raso: é o arrepio do horror que elas comunicam em vez do sentimento solene e profun- do induzido por situações mais elaboradas (RADCLIFFE, 2002).
A partir desse fragmento, podemos elucubrar com mais segurança sobre a rela- ção entre uma das maiores autoras do gótico literário e o próprio gêne ro: a utilização de deter minadas estratégias da narrativa gótica correspon dia a toda uma reflexão sobre tais estratégias. Assim como as correspon dências de William Beckford, organizadas em The Red Copy Book, podem servir como base para sugerirmos que a escrita gótica não era apenas uma questão de estilo literário, mas também uma expres são fiel da maneira como o autor vivia, um resultado do modo como entendia seu mundo:
Uma névoa constante ronda meus olhos, e, através dela, vejo objetos tão embaça- dos e volúveis, que suas cores e formas me enganam. [...] Resolvi usufruir dos meus Sonhos, minhas fantasias e toda minha singularidade, ainda que isso seja pe- sado e muito inovador para o Mundo ao meu redor (BECKFORD, 1997).
Mesmo tomado por uma disposição fantasiosa, Beckford também foi extre mamente cuidadoso ao defender sua obra, asse gurando que “não economi zou esforços na composi ção” de Vathek, e que, sabendo que o indivíduo setecentista “moderado, hon- rável e iluminado, julgaria” o uso de senti mentos escandalosos co mo algo “execrável”, seu “principal cuidado foi o de manter a obra livre de tais elementos” (BECKFORD, 1993, pp. 157-8). Isso que forma um paradoxo com a citação anterior. A meu ver, uma expli- cação plausível para tal paradoxo é que, a fim de viabilizar a publi cação, a compra e a circulação de uma obra, o seu autor ou autora utiliza vam artifícios diversos, e um deles poderia ser a falsa concordância com os padrões estilísticos e con ceituais da época.