editorial
No dia em que escrevo
estas linhas já as uvas
estão a ser colhidas um
pouco por todo o país.
Em algumas regiões, a
vindima vai em velocidade
de cruzeiro, noutras
cortam-se os primeiros
cachos. Este tempo de
colheita faz-me pensar
no trabalho dos muitos
profissionais, produtores,
viticólogos, enólogos, que
têm agora a sua “prova de
fogo”, o momento por que
esperaram ao longo de um
ano inteiro.
luis lopes
[email protected]
A gente que
faz o vinho
A
vindima é feita de gente. Em nenhum outro período do ano há tamanho
movimento de pessoas numa propriedade vitivinícola. No meio
das vinhas, de tesoura na mão ou caixa às costas, nos tractores e
atrelados, nas máquinas de vindimar, descarregando as uvas nas
prensas, puxando mangueiras na adega, medindo mostos no laboratório,
vigiando as fermentações. Muitas destas pessoas só ali vão uma
vez por ano, precisamente nestas semanas em que se cortam os cachos e se transformam
em vinho. Outras, estão no local praticamente todos os dias, ajudando as videiras
no seu percurso até à vindima seguinte ou acompanhando os vinhos que se fizeram na
colheita anterior.
Onde há pessoas existe pensamento e acto, reflexão e decisão. Sendo um fruto da natureza,
o vinho não é feito por ela, é produto exclusivo da intervenção humana. As
uvas que agora se colhem são tanto o resultado das condições do ano vitícola como das
opções que foram seguidas para mitigar, em alguns casos, ou potenciar, noutros, a obra
da natureza.
Muitas dessas decisões aconteceram bem antes da vindima. Já nem falo das que estiveram
na base da criação da vinha e que resultam de opções estratégicas de longo prazo:
onde, quando, como, o que plantar. Bastam-me todas aquelas operações que ocorrem
ao longo do ciclo vegetativo da videira e que implicam processos de ponderação e decisão
quase diários: podas, empas, tratamentos, desfolhas, correções de solos, rega,
mondas, a lista é infindável. O ano de 2020 foi especialmente desafiante nesse sentido,
com ataques de míldio e oídio difíceis de controlar e tudo isto num contexto agravado
pela pandemia e os cuidados a ter na gestão do espaço e do movimento das pessoas. O
trabalho do viticólogo e da sua equipa vai a exame agora, à medida que os cachos entram
na adega. Não sei o que passará pela cabeça do chamado “pessoal de campo”:
ansiedade, sentimento de dever cumprido, ou aquele misto de preocupação e alívio que
os pais sentem quando um filho se emancipa e sai de casa?
O fruto que uns entregam fica agora a cargo de outros, a gente da enologia, na adega.
E, de novo, as decisões sucedem-se, frequentemente sem tempo para reflectir o suficiente
antes de as tomar. Prensagens, pisas, fermentações, remontagens, desencubas,
lagares, cubas, barricas. Em muitos casos, fruto do histórico de anos anteriores, as uvas
que chegam à adega já têm um destino específico, esperam-se que origine um vinho
concreto. Umas vezes cumprem, outras não. Nunca esqueço o que o enólogo Michel
Rolland me disse, há quase 20 anos: partindo das mesmas uvas, a diferença entre um
vinho muito bom e um grande vinho está nos detalhes. Ou seja, de cada vez que, pressionados
pelas circunstâncias, decidimos por um compromisso, facilitamos num detalhe,
descemos um degrau na escada que leva à grandeza.
Opções são tomadas minuto a minuto enquanto os mostos fermentam. Assentes na
experiência e no saber empírico, ou alicerçadas no conhecimento científico, são essas
decisões que, somadas às que aconteceram na vinha, vão definir os vinhos que agora
nascem e que vamos beber dentro de alguns meses ou daqui a muitos anos.
Neste tempo de vindima, enquanto apreciador e profissional da escrita, agradeço sentidamente
a todos aqueles que fazem o vinho acontecer. O vinho tem, obviamente,
uma base natural que não dominamos. Não está nas nossas mãos criar um terroir de
excelência onde ele não existe, não conseguimos evitar um granizo ou um escaldão. Do
mesmo modo que um pescador não domina o mar onde pesca. Mas ao contrário do
peixe, o vinho é um produto transformado, fruto de decisões humanas. E é muito bom
saber que algumas coisas ainda dependem de nós.
GRANDESESCOLHAS.COM|2