editorial
Mal me quer,
bem me quer
Num movimento (vínico e
não só) que um pouco por
toda a Europa aponta para
uma espécie de regresso
às origens, um retorno ao
tradicional e ao clássico,
estamos a assistir também
em Portugal à reabilitação
de algumas variedades
de uva que caíram em
desgraça a partir dos anos
90. E os resultados são bem
interessantes.
luis lopes
[email protected]
Nesta edição da Grandes Escolhas publicamos dois trabalhos que, de
alguma forma, se centram em castas mal amadas. Mariana Lopes
relata e comenta uma prova temática de Fernão Pires organizada
pela CVR da região do Tejo; e Dirceu Vianna Junior reflecte sobre
o passado, presente e futuro da variedade Jaen.
A Fernão Pires é um caso paradigmático de casta incompreendida.
É a variedade branca mais plantada em Portugal, presente de norte a sul do país e,
sem sombra de dúvida, a casta identitária do Tejo. Nesta região, ao longo de décadas,
foi utilizada como pau para toda a obra, explorada até ao tutano, plantada em terrenos
de melão, sempre com o intuito de produzir quantidade a baixo preço. Quando o
mercado mudou e exigiu mais qualidade, os produtores procuraram de imediato outras
castas “salvadoras” em vez de tratar melhor aquela que tinham em casa. E, no
entanto, Fernão Pires é uma uva plena de carácter, adaptável a diferentes tipos de solo
e clima, muito plástica nos perfis de vinhos que pode originar. Apenas pede a atenção
e cuidado que tantas vezes são disponibilizados a castas supostamente mais nobres.
A Jaen passou, no Dão, pelo mesmo calvário. Na primeira metade do século XX tomou
o lugar da Touriga Nacional, porque esta produzia pouco e amadurecia tarde, e
o que se queria era quantidade e fugir às chuvas de setembro que arruinavam a colheita.
E a Jaen fazia tudo o que lhe pediam. No final da década de 80, quando a
Touriga regressou do longo exílio, agora bem mais musculada e rejuvenescida, a Jaen
tornou-se a casta a abater: fazia vinhos sem cor, sem taninos, sem longevidade. Pudera,
se a obrigavam a produzir barbaridades de uva! Felizmente, tal como acontece
com a Fernão Pires no Tejo, os produtores do Dão estão agora a redescobrir a Jaen e
a dar-lhe a oportunidade de mostrar o que vale quando bem tratada. E, como revela
a prova de Dirceu Vianna Junior, vale muito. É verdade que a maturação precoce que
Fernão Pires e Jaen partilham, e que foi outrora uma “vantagem competitiva”, pode
vir a ser um problema num cenário de alterações climáticas. Mas o conhecimento
vitícola que hoje possuímos e as ferramentas que temos à nossa disposição permitem
contornar favoravelmente essa aparente desvantagem.
Por outro lado, avaliar a qualidade de uma casta unicamente pelo seu desempenho
enquanto vinho monovarietal é um enorme disparate. As variedades de uva não precisam,
para ser muito boas, de fazer grandes vinhos a solo. Basta que cumpram um
papel de relevo no “blend”, que se evidenciem como importante mais valia no conjunto,
que sejam a base ou o complemento de um grande vinho. Nos melhores tintos
de Bordeaux, raramente o Cabernet Sauvignon aparece sozinho. Nos melhores vinhos
do Douro, dificilmente encontramos Touriga Franca sem companhia. Nos melhores
clássicos alentejanos, Alicante Bouschet, Trincadeira, Aragonez, são complementares.
Haverá casamento mais perfeito do que Fernão Pires e Arinto no Tejo? Ou
Fernão Pires (Maria Gomes) com Bical e Cercial na Bairrada? Ou Jaen com Touriga
Nacional e/ou Alfrocheiro no Dão?
Fernão Pires e Jaen, a solo ou acompanhadas, são capazes de nos oferecer muita qualidade
sem perder personalidade. Mais do que isso, podem assumir-se como fundamentais
no reforço da identidade regional. Além de que, convenhamos, dá sempre um
certo gozo ver o patinho feio transformar-se em cisne…
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