V Grandes Escolhas Abril 2021 | Page 4

luis lopes

editorial Onde tudo começa

Terra , pedra , textura . Vale , encosta , planalto . Vento , chuva , escaldão , geada . Podar , empar , vigiar , tratar . Enfrentar o frio e o calor , provar os bagos para avaliar sabor , açúcar , acidez , taninos . Regressar triste ou contente , desalentado ou entusiasmado . Será que o tempo aguenta até à vindima ? É ali , na vinha , que tudo tem início . Quem não sente a videira , não pode verdadeiramente sentir o vinho .

luis lopes

luislopes @ grandesescolhas . com

Em mais de três décadas a escrever sobre vinhas e vinhos já assisti a muitos ciclos de produção e comercialização . Quando comecei , em 1989 , a esmagadora maioria das marcas existentes no mercado correspondiam a vinhos que não tinham sido feitos pela empresa que os engarrafou . Em muitos casos , o proprietário da marca , sobretudo as de maior volume , não tinha sequer ideia da origem do vinho que comprou e que depois vendeu com o seu rótulo . Salvo honrosas excepções , vinha , vinho e marca eram três mundos separados que só se relacionavam através de transações comerciais . Algumas casas entre as grandes possuíam adegas e vinhas próprias , é certo . Mas estas representavam uma parte irrisória das suas necessidades de uvas e vinho . E , mesmo dentro de casa , a vinha era algo longínquo para quem estava na adega e na sala de provas . Em muitas empresas , o enólogo chefe raramente sujava as botas na vinha e , quando o fazia , não era com prazer . Entretanto , o consumidor foi-se tornando mais conhecedor e exigente . E , a dada altura , deu-se um momento de viragem , quando encontrou valor acrescentado nos chamados “ vinhos de quinta ”. As empresas maiores sentiram então a necessidade de ter mais controlo sobre a matéria-prima que recebiam . Começaram a aumentar a sua área de vinha , a profissionalizar a vertente agrícola , a valorizar os conhecimentos dos técnicos de viticultura . No início no século XXI , cresceu entre o apreciador a vontade de saber mais , de chegar até à origem do vinho , de visitar a vinha onde este nasceu . Ao mesmo tempo , já não lhe bastava aceder a um bom produto , o vinho tinha também de ser diferenciador , de ter uma história para contar . Aliada esta vontade do mercado à necessidade de manter a consistência das marcas , as grandes casas reforçaram o seu investimento em terra , em vinha e nos recursos humanos que lhe estão associados . Hoje em dia , é quase impensável para as empresas de maior dimensão , e com marcas em diversos segmentos de preço , não controlar a maioria das uvas , seja nas vinhas próprias , seja nas dos fornecedores . Curiosamente , porém , nos últimos dois ou três anos , tenho vindo a assistir a algo que , até há pouco , julgaria impensável : o nascimento de marcas de nicho alicerçadas num nome “ cool ” e num rótulo atractivo , e potenciadas pelas redes sociais . Marcas sem vinha , sem adega , sem vinho (!), protagonizadas por pessoas oriundas de outras áreas de actividade que se insinuam junto de um produtor e que , perante dez ou doze amostras que lhe colocam à frente , escolhem uma para vender com o seu nome . E depois , apesar de nunca terem pegado numa tesoura de poda , enchido uma cuba , colocado uma rolha , contam no Facebook uma história sobre uma vinha que não conhecem e sobre um vinho que “ ajudaram a fazer ”. Alguns , não têm vergonha de acentuar que até “ ensinaram ” o enólogo a melhorar o lote . E vendem essas garrafas como vinho “ de autor ”, cinco vezes mais caro . Só cai quem quer , é verdade , e gente com talento para tomar como seu o trabalho dos outros sempre houve em todas as áreas de negócio . O que me espanta , no entanto , é que são precisamente os apreciadores que valorizam a genuinidade e a diferença que vão no logro , e compram esta falsa exclusividade a um preço muito acima do seu valor qualitativo . Tenho para mim que , quanto mais ambicioso e oneroso for um vinho , mais fácil deverá ser para o consumidor seguir as suas pegadas até à origem . E a origem de um grande vinho é terra , é vinha , é gente . É verdadeiramente ali que tudo começa . Sem essa rastreabilidade , o vinho é apenas uma marca , mais uma .

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