século dezassete era uma empresa razoável, necessária, quem sabe
se fatal; nos princípios do vinte, é quase impossível. Não transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos factos.
Entre eles, para citar um apenas: o próprio Quixote.»
Apesar desses três obstáculos, o fragmentário Quixote de Menard é mais subtil que o de Cervantes. Este, burlescamente, opõe às
ÅKtM[KI^ITMQZM[KI[IXWJZMZMITQLILMXZW^QVKQIVILW[M]XIy[#5Mnard elege como «realidade» a terra de Carmen durante o século de
Lepanto e de Lope. Que espanholadas não teria esta escolha sugerido a Maurice Barrès ou ao Dr. Rodriguez Larreta! Menard, com toda
a naturalidade, evita-as. Na sua obra não há ciganagens, nem conspiradores, nem místicos, nem Filipe Segundo, nem autos-de-fé. Desatende ou proscreve a cor local. Esse desdém revela um sentido novo
do romance histórico. Esse desdém condena Salambô inapelàvelmente.
Não menos assombroso é considerar capítulos isolados. Por
exemplo, examinemos o XXXVIII da primeira parte. «que trata
do curioso discurso que fez Dom Quixote sobre as armas e as
letras». É sabido que Dom Quixote (como Quevedo na passagem
análoga, e posterior, de «A hora de todos») julga o pleito contra
as letras e a favor das armas. Cervantes era um velho militar: a sua
decisão explica-se. Mas que o Dom Quixote de Pierre Menard —
homem contemporâneo de La trahison des clercs e de Bertrand Russell
¸ ZMQVKQLI VM[[M[VMJ]TW[W[[WÅ[UI[ 5me Bachelier viu neles a
ILUQZn^MTM\yXQKI[]RMQtrWLWI]\WZoX[QKWTWOQILWPMZ~Q#W]\ZW[
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LM*IKW]Z\IQVÆ]wVKQILM6QM\b[KPM)M[[I\MZKMQZIQV\MZXZM\ItrW
(que acho irrefutável) não sei se me atreverei a aditar uma carta,
que muito condiz com a quase divina modéstia de Pierre Menard:
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JO RG E LU IS BORGES
o seu hábito resignado ou irónico de propagar ideias que eram
o estrito reverso das preferidas por ele. ( Rememoremos outra vez
a sua diatribe contra Paul Valéry na efémera folha surrealista
de Jacques Reboul.) O texto de Cervantes e o de Menard são
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rico. (Mais ambíguo, dirão os seus detratores; mas a ambiguidade
é uma riqueza.)
Constitui uma revelação cotejar o «Dom Quixote» de Menard
com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu («D. Quixote»,
primeira parte, nono capítulo):
...a verdade, cuja mãe é a história, émulo do tempo, depósito das acções, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.
Redigida no século dezassete, redigida pelo «engenho leigo»,
Cervantes, essa enumeração é um mero elogio retórico da história.
Menard, em compensação, escreve:
...a verdade, cuja a mãe é a história, émulo do tempo, depósito das acções,
testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.
A história, mãe da verdade; a ideia é espantosa. Menard, contemXWZpVMWLM?QTTQIU2IUM[VrWLMÅVMIPQ[\~ZQIKWUW]UIQVLIgação da realidade, mas como a sua origem. A verdade histórica,
para ele, não é o qu e sucedeu; é o que pensamos que sucedeu. As
cláusulas ÅVIQ[M`MUXTWMI^Q[WLWXZM[MV\MIL^MZ\wVKQILWN]\]ZW — são
descaradamente pragmáticas.
Vívido também é o contraste dos estilos. O estilo arcaizante
de Menard — no fundo estrangeiro — padece de alguma afectação. Não assim o do precursor, que com desenfado maneja o
espanhol corrente da sua época.
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T R Ê S FI CÇÕ E S
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