Scripsi Scriptsi Número 2 | Page 24

A relação dos diversos personagens da Busca do Tempo Perdido com Vermeer é profeticamente igual à dos leitores antigos e modernos com esta obra: uns lêem a Busca para dizer que leram; outros lêem e só vêem condessas, vestidos, caleches e futilidades; e outros ainda, nem lêem, preferem informar-se sobre a vida de Marcel Proust e depois de saber certos pormenores, como o facto de ser homossexual ou ter frequentado prostíbulos, preferem nem ler semelhante autor imoral. A propósito de uma pergunta colocada por Albertine, Marcel alarga-se em comentários sobre Dostoievski e, para explicar a estrutura dos romances do autor russo, socorre-se dos quadros de Vermeer, estabelecendo assim uma relação entre a escrita e a pintura. As explicações seguem uma estrutura de análise estética muitas vezes utilizada: no fundo, Vermeer, varia nos quadros, mas pinta sempre o mesmo mundo, nem o facto de se tratar de paisagens ou indivíduos altera isso. Marcel diz isso sobre a obra de Vermeer e, no fundo, também o podemos dizer sobre a a obra de Marcel Proust e sobre a Busca do Tempo perdido: Gilberte e Albertine são variações da mulher, Combray e Veneza são variações de paisagens que fazem pontes entre o passado e o presente. As fronteiras, todas as fronteiras, se esbatem, tudo se mistura na nossa interioridade e, por isso mesmo, na narrativa: lugares, momentos e pessoas se interpõem, emaranham e amalgamam. Todas as fronteiras são abolidas formando um fluído único. Vermeer pinta pessoas, mas não pinta retratos. Não está em causa registar para a posteridade a figura de alguém, o objectivo é outro, muito mais amplo, mais geral, quase metafísico: trata-se de captar no momento, seja pessoa ou paisagem, o intemporal, o eterno e até, o metafísico no sentido próprio, isto é, o que está (muito) para além do momento físico. Estranhamente, em Vermeer, os modelos de base estão desindividualizados e os locais estão desparticularizados. Note-se que os modelos tratados são quase inexpressivos, numa quase mistura de placidez clássica da estatuária. Vermeer pára o tempo, o movimento e o ritmo para poder projectar a interioridade. Isso também acontece na Busca, todas as personagens, situações e paisagens que aparecem nesse “fresco” pintado, não passam de variações de estados interiores, tudo é um gigantesco fluido emocional, por isso mesmo: Proust escreve como Vermeer pinta. O encontro de Elstir com o quadro de Vermeer e a sua morte frente à obra simboliza o grande encontro proustiano entre a escrita e a pintura. Elstir que r ir ver o quadro porque leu uma crítica sobre o mesmo: a escrita motivando a pintura. Na verdade, este episódio, de alguma forma, reconstrói o que aconteceu com Marcel Proust: depois da leitura de um artigo de Jean-Louis Vaudoyer, escrito por ocasião da exposição de pintores holandeses em Jeu de Paume em 1921. Proust pede ao crítico de arte, escritor, etc, se este aceita levá-lo à exposição. Há uma carta interessante, datada de 14 de maio de 1921 em que Proust diz “Pode, por favor, dar-me o braço e levar o morto que eu sou já?” (Voulez-vous y conduire le mort que je suis et qui s'appuiera sur votre bras?”, correspondances, t.20) Vaudoyer, evidentemente, acompanhará Marcel Proust à exposição. Vermeer não chega, no entanto, ao público francês pela mão do, mais tarde e por outras razões, polémico Vaudoyer, mas sim pela mão de Etienne Thoré, conhecido como o Bürger. Vermeer, como digo no artigo “Vermeer pintor do silêncio”, tem dois salvadores: Thoré e o próprio Marcel Proust. Na verdade, temos provas concludentes que Proust leu os artigos de Vaudoyer, mas não sabemos se, verdadeiramente, leu os artigos de Bürger. Alguns indícios vão nessa direcção, um exemplo simples é o facto de Proust grafar o nome do pintor separadamente, Ver Meer, como Bürger fazia. Moça com o Brinco de Pérola ("Het Meisje met de Parel"). c. 1665 Vermeer. "De geoograf" (1669). Vermeer. 24 24 25 25