Scripsi Scriptsi Número 2 | Page 22

“ LAURA ”: ASTÚCIAS E SEGREDOS DE UM CLÁSSICO DO CINEMA “ NOIR ”
Chico Lopes
“ LAURA ”: ASTÚCIAS E SEGREDOS DE UM CLÁSSICO DO CINEMA “ NOIR ”
Quando , pela primeira vez , se vê um filme clássico de que se ouviu falar por muito tempo , há uma enorme expectativa seguida de certa inevitável perplexidade . No meu caso , tendo conhecido “ Laura ” primeiro em alguma exibição de tarde da noite na televisão , lembro-me que a impressão não foi boa : por que tantas loas para um filme policial convencional como aquele ? – pensei , achando que a história era emperrada e os diálogos pouco atraentes . Os anos se passaram e só com a indústria dos DVDs de clássicos que saem bem cuidados e com muitos extras consolidada , é que fui compreender melhor o filme . Não o considero uma obra-prima , mas que é uma produção intrigante e que merece ser vista , não há dúvida alguma .
É reconhecidamente um clássico do “ noir ”, mas não tem uma “ femme fatale ” nem outros sinais típicos do gênero . “ Laura ”, na verdade , é um filme que parece transcender o gênero , embora carregue alguns de seus estilemas . Quando se vê o filme mais de duas vezes é que se nota que ele , essencialmente , trata de uma mistura de encantamento romântico , morbidez e decadência . E , na verdade , é um filme sobre desejos reprimidos e freudianamente sublimados , concentrando-se na projeção da homossexualidade neurótica e idealista de um homem , o colunista Waldo Lydecker , vivido pelo ator Clifton Webb .
O filme pertence a um personagem estranho , e por isso é tão lembrado . As astúcias do diretor Otto Premminger para falar desses desejos de Waldo Lydecker são notórias . Quando o filme começa , o detetive vivido por Dana Andrews , que investiga o assassinato de Laura Hunt , vai ao seu apartamento . Lydecker está nu numa banheira , e , ao levantar-se , pedindo uma toalha para o detetive , fora de cena , exibe-se para ele , que dá uma quase imperceptível demonstração de compreensão irônica . É só o rosto de Andrews que vemos , mas basta . O implícito aí é significativo demais , para um filme realizado em 1944 . Lydecker quer seduzir o detetive , ou ao menos afrontá-lo , provocá-lo com sua nudez . Não há desse tipo de relação insinuante entre dois homens nos filmes daquela época , o assunto era um tabu grande demais .
Lydecker é o típico colunista afetado , dândi , que derrama epigramas cínicos , grandes frases de espírito e réplicas perversas , que o Cinema e certa literatura forjaram . Tem ares de clichê , mas talvez ainda não o fosse tanto , naquela época . Descende diretamente de Oscar Wilde , claro . Por isso , sua paixão por Laura Hunt nunca nos convence senão como uma espécie de capricho de esteta pelo fato de ela ser muito bonita . Laura é o ideal feminino de Lydecker , o que não quer dizer de modo algum que ele queira ir para a cama com ela – que é o que o resto da humanidade masculina deseja . É realmente um “ solteirão convicto ” e não há menor química entre o ator Clifton Webb e a estrela Gene Tierney – parece até absurdo imaginar que aqueles dois possam ser mais que amigos . No entanto ...
PAIXÕES TORTAS , VISÃO FILISTÉIA
“ Laura ” é um prato de nostalgia muito saboreado por quem curte os filmes dos anos 40 , por quem os viu quando saíram e nunca os esqueceu , de um modo ou de outro . O filme é marcado pela trilha sonora de um modo que poucos foram – a melodia composta por Dave Raksin foi um sucesso enorme , gravada por muitos cantores e orquestras , e ainda conserva seu apelo melancólico como uma cápsula emocional dos anos 40 . O folclore da produção inclui que Raksin a teria composto baseado num acontecimento pessoal – a leitura de uma carta de rompimento amoroso escrita por sua mulher , e aquela dolência , aquele tom de elegia , lhe teria brotado das palavras fatídicas de ruptura que ia lendo . Raksin encontrou o pathos musical que pode haver num fim-de-caso num movimento de leitura – o episódio é muito interessante e parece verdadeiro . A melodia é evocativa e parece declarar que o amor romântico é sempre assim , um malogro de que se extrai beleza e dor e que é acalentado pelo masoquismo lúcido .
12 12