“ LAURA”: ASTÚCIAS E SEGREDOS DE UM CLÁSSICO DO CINEMA“ NOIR”
Chico Lopes
“ LAURA”: ASTÚCIAS E SEGREDOS DE UM CLÁSSICO DO CINEMA“ NOIR”
Quando, pela primeira vez, se vê um filme clássico de que se ouviu falar por muito tempo, há uma enorme expectativa seguida de certa inevitável perplexidade. No meu caso, tendo conhecido“ Laura” primeiro em alguma exibição de tarde da noite na televisão, lembro-me que a impressão não foi boa: por que tantas loas para um filme policial convencional como aquele? – pensei, achando que a história era emperrada e os diálogos pouco atraentes. Os anos se passaram e só com a indústria dos DVDs de clássicos que saem bem cuidados e com muitos extras consolidada, é que fui compreender melhor o filme. Não o considero uma obra-prima, mas que é uma produção intrigante e que merece ser vista, não há dúvida alguma.
É reconhecidamente um clássico do“ noir”, mas não tem uma“ femme fatale” nem outros sinais típicos do gênero.“ Laura”, na verdade, é um filme que parece transcender o gênero, embora carregue alguns de seus estilemas. Quando se vê o filme mais de duas vezes é que se nota que ele, essencialmente, trata de uma mistura de encantamento romântico, morbidez e decadência. E, na verdade, é um filme sobre desejos reprimidos e freudianamente sublimados, concentrando-se na projeção da homossexualidade neurótica e idealista de um homem, o colunista Waldo Lydecker, vivido pelo ator Clifton Webb.
O filme pertence a um personagem estranho, e por isso é tão lembrado. As astúcias do diretor Otto Premminger para falar desses desejos de Waldo Lydecker são notórias. Quando o filme começa, o detetive vivido por Dana Andrews, que investiga o assassinato de Laura Hunt, vai ao seu apartamento. Lydecker está nu numa banheira, e, ao levantar-se, pedindo uma toalha para o detetive, fora de cena, exibe-se para ele, que dá uma quase imperceptível demonstração de compreensão irônica. É só o rosto de Andrews que vemos, mas basta. O implícito aí é significativo demais, para um filme realizado em 1944. Lydecker quer seduzir o detetive, ou ao menos afrontá-lo, provocá-lo com sua nudez. Não há desse tipo de relação insinuante entre dois homens nos filmes daquela época, o assunto era um tabu grande demais.
Lydecker é o típico colunista afetado, dândi, que derrama epigramas cínicos, grandes frases de espírito e réplicas perversas, que o Cinema e certa literatura forjaram. Tem ares de clichê, mas talvez ainda não o fosse tanto, naquela época. Descende diretamente de Oscar Wilde, claro. Por isso, sua paixão por Laura Hunt nunca nos convence senão como uma espécie de capricho de esteta pelo fato de ela ser muito bonita. Laura é o ideal feminino de Lydecker, o que não quer dizer de modo algum que ele queira ir para a cama com ela – que é o que o resto da humanidade masculina deseja. É realmente um“ solteirão convicto” e não há menor química entre o ator Clifton Webb e a estrela Gene Tierney – parece até absurdo imaginar que aqueles dois possam ser mais que amigos. No entanto...
PAIXÕES TORTAS, VISÃO FILISTÉIA
“ Laura” é um prato de nostalgia muito saboreado por quem curte os filmes dos anos 40, por quem os viu quando saíram e nunca os esqueceu, de um modo ou de outro. O filme é marcado pela trilha sonora de um modo que poucos foram – a melodia composta por Dave Raksin foi um sucesso enorme, gravada por muitos cantores e orquestras, e ainda conserva seu apelo melancólico como uma cápsula emocional dos anos 40. O folclore da produção inclui que Raksin a teria composto baseado num acontecimento pessoal – a leitura de uma carta de rompimento amoroso escrita por sua mulher, e aquela dolência, aquele tom de elegia, lhe teria brotado das palavras fatídicas de ruptura que ia lendo. Raksin encontrou o pathos musical que pode haver num fim-de-caso num movimento de leitura – o episódio é muito interessante e parece verdadeiro. A melodia é evocativa e parece declarar que o amor romântico é sempre assim, um malogro de que se extrai beleza e dor e que é acalentado pelo masoquismo lúcido.
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