de que nenhuma pessoa sensata iria duvidar da legitimidade do
escravismo, do direito de um povo escravizar os vencidos (assim
como, podemos depreender, cabia aos patriarcas submeter as
mulheres). Ele recomendava equilíbrio no trato com escravos: nem
despótico a ponto de provocar vingança contra familiares, nem
íntimo a ponto de se tornar dependente. Ele tinha, portanto, noção
da “política” nesse setor, o que ele ignora na República.
Reiteradamente tem-se nele a assertiva de que os “sofistas”
são indecentes e inconfiáveis na argumentação porque “vendem
conhecimentos”, ou seja, são professores assalariados. A contra-
partida é um “mestre” que não precisa ser pago para ficar lecio-
nando. Ora, quem sustenta esse mestre? Que mestre é esse que
não precisa de dinheiro para sobreviver? Qual seu segredo? Ora,
simples: já que o Estado não intervém: tem escravos que o susten-
tam, ele vive, e bem, às custas de escravos: como professor,
prepara novas elites de comando.
Hoje, a “escravidão” se disfarça de salário mínimo, empreitada
e diária, que são formas mais baratas do que manter escravos
permanentes. Por essa semelhança estrutural, tendemos a não
ver o que mais deveríamos. Sócrates é o sofista maior, e sobre ele
repousa a cultura ocidental. Aparece como representante da
verdade, quando é um ideólogo do escravismo. Não agrada falar
do que mais dói.
Platão chega a aventar, através de Sócrates, que um escravo
poderia ter “alma”, à medida em que ele é capaz de intuir princí-
pios de proporção geométrica e matemática, já que sua “psiquê”
poderia ter contemplado o mundo das ideias. Aristófanes resolveu
isso com uma risada: quando escravos disputam o direito de
serem levados para os Campos Elísios, diz que eles não têm
dinheiro, não podem pagar o transporte. Mesmo que tivessem
“alma”, seu destino seria ficar vagando: almas penadas pelo
mundo (conforme haviam feito em vida). No Direito Romano, um
escravo equivalia a um cavalo ou a um boi: seu dono podia bater
nele, podia até matá-lo, que não seria responsabilizado por cruel-
dade ou assassinato.
Platão não leva adiante, contudo, a suposição de o escravo ter
alma: o cristianismo deveu seu sucesso à democratização da
imortalidade antes reservada a deuses e raros descendentes. Ao
preço de três gotas e palavras mágicas, cada um queria a sua. Na
perspectiva antiga, somente as famílias nobres tinham um ascen-
150
Flávio R. Kothe