Riscos que nos ameaçam PD50 | Page 152

de que nenhuma pessoa sensata iria duvidar da legitimidade do escravismo, do direito de um povo escravizar os vencidos (assim como, podemos depreender, cabia aos patriarcas submeter as mulheres). Ele recomendava equilíbrio no trato com escravos: nem despótico a ponto de provocar vingança contra familiares, nem íntimo a ponto de se tornar dependente. Ele tinha, portanto, noção da “política” nesse setor, o que ele ignora na República. Reiteradamente tem-se nele a assertiva de que os “sofistas” são indecentes e inconfiáveis na argumentação porque “vendem conhecimentos”, ou seja, são professores assalariados. A contra- partida é um “mestre” que não precisa ser pago para ficar lecio- nando. Ora, quem sustenta esse mestre? Que mestre é esse que não precisa de dinheiro para sobreviver? Qual seu segredo? Ora, simples: já que o Estado não intervém: tem escravos que o susten- tam, ele vive, e bem, às custas de escravos: como professor, prepara novas elites de comando. Hoje, a “escravidão” se disfarça de salário mínimo, empreitada e diária, que são formas mais baratas do que manter escravos permanentes. Por essa semelhança estrutural, tendemos a não ver o que mais deveríamos. Sócrates é o sofista maior, e sobre ele repousa a cultura ocidental. Aparece como representante da verdade, quando é um ideólogo do escravismo. Não agrada falar do que mais dói. Platão chega a aventar, através de Sócrates, que um escravo poderia ter “alma”, à medida em que ele é capaz de intuir princí- pios de proporção geométrica e matemática, já que sua “psiquê” poderia ter contemplado o mundo das ideias. Aristófanes resolveu isso com uma risada: quando escravos disputam o direito de serem levados para os Campos Elísios, diz que eles não têm dinheiro, não podem pagar o transporte. Mesmo que tivessem “alma”, seu destino seria ficar vagando: almas penadas pelo mundo (conforme haviam feito em vida). No Direito Romano, um escravo equivalia a um cavalo ou a um boi: seu dono podia bater nele, podia até matá-lo, que não seria responsabilizado por cruel- dade ou assassinato. Platão não leva adiante, contudo, a suposição de o escravo ter alma: o cristianismo deveu seu sucesso à democratização da imortalidade antes reservada a deuses e raros descendentes. Ao preço de três gotas e palavras mágicas, cada um queria a sua. Na perspectiva antiga, somente as famílias nobres tinham um ascen- 150 Flávio R. Kothe