OPINIÃO
C olunista
2040: uma distopia ao sul do mundo
P
arece incrível, mas se está vivendo no
ano de 2040. Lá pelo final da segunda
década desse século, antes dos “lou-
cos anos vinte”, contava-se a indefectível saga
de Johnny - de advogado que sonhara ter um
jatinho, criou uma religião e depois ampliou
seus negócios para outros ramos, desde a mi-
neração até tornar-se um artista, embora sem
muito talento. Havia, porém, um cara chato que
ficava lembrando como Johnny enriqueceu
sem incomodar-se com os tributos.
Ao sul do mundo, naquele mesmo país, re-
latava ele, havia também João, cuja vida pouco
lembrava a ostentação (palavra que estava na
moda) de Johnny. Após ter lido dois livros de
Buffon
poucas páginas, muitas letras garrafais e alguns Marciano
pós-Doutor,
desenhos, havia encontrado seu caminho para professor da Unisinos
ter uma vida boa. Tornou-se, assim, um empre-
endedor de si próprio (como sugeria aquele livro que tinha no título uma
palavra que sua mãe outrora não admitia ser pronunciada: começava
com F..). Poucos lembram, mas, naquele tempo, consideravam-se muito
as dicas dadas por gurus que se autointitulavam coaches. Sua empresa,
que se denominava Startup, nunca prosperou e, hoje, pouco se fala sobre
a onda empreendedora que varreu aquele país por quase uma década.
Claro que, ao final dos anos vinte, após o êxtase insano coletivo que
se abateu sobre seu país, a vida ficou muito mais difícil para todos (João
em especial). Tornou-se insuportável quando eclodiu a Grande Guerra
Religiosa contra dois países vizinhos (mais ao sul ainda), que recusavam se
converter à religião oficial que se instalara no país. A nova “guerra santa”
foi inspirada nas cruzadas da Idade Média, embora fosse até engraçado
ver tropas cavalgando para a fronteira, com espadas na bainha, osten-
tando símbolos religiosos e entoando cânticos divinos. Obviamente deu
errado, e os países vizinhos rechaçaram a invasão sem maiores esforços,
embora com severas perdas para os “Cruzados do Século XXI”. Porém,
isso colaborou para a instauração de um regime teocrático naquele país,
em que as forças armadas foram substituídas por “soldados de deus”, os
quais, entre outras atribuições, fiscalizavam e perseguiam os hereges, não
convertidos e ateus.
Em meados dos anos 2030, o país no qual vivera nosso protagonista
desaparecera. João, com quase sessenta anos, tinha mais história do que
futuro. Sua esposa o deixara há mais de dez anos e, agora - com um manto
preto, que lhe escondia quase toda a face -, pregava nas decadentes ruas
da ex-metrópole, a conversão de todos, lembrando os severos castigos
aplicados a quem ousasse duvidar da “palavra”. Seus dois filhos haviam
sido condenados por rebeldia religiosa, dos quais não tinha notícias desde
que foram presos por se recusarem a combater na guerra santa.
Já não havia indústrias. Os prédios utilizados para atividade tornaram-
se grandes depósitos de mercadorias adquiridas da República da China-
sia. Durante os anos vinte, quase todos trabalhadores aderiram ao empre-
endedorismo e prestavam serviços de transporte, entrega de mercadorias
e alimentos, ou montaram pequenos negócios como restaurantes, bares,
mercearias... Com a “Grande Crise Pós-Guerra Santa”, a maioria dos em-
preendedores faliram e restara nas cidades dilaceradas poucos postos
de trabalho no setor de segurança; enquanto alguns faziam entregas de
mercadorias a pé ou puxando carrinhos, pois o
combustível tornara-se um artigo de luxo não
acessível, o que também explicava a imensa
quantidade de sucatas espalhadas pelas cida-
des de carros abandonados. Ainda era possível
trabalhar para o governo, como “soldado de
deus” ou como pregador, tal qual o fizera a ex-
-esposa de João.
Já algum tempo não havia “desemprega-
dos”. Os desocupados que fossem flagrados
praticando o crime de vadiagem eram envia-
dos para a frente de trabalho, para derrubar ár-
vores e tornar - o que restava da Floresta Maior
- uma área útil para o plantio da “combusta”, um
pequeno arbusto usado na produção de com-
bustível. Após cinco anos de pena, eram transfe-
ridos para as grandes fazendas de cultivo da tal
planta, que se estendiam do centro até o norte
do país. É certo que havia equipamentos para tal finalidade muito mais
eficazes, mas isso faria com que o Estado tivesse que construir prisões para
albergar os “vadios hereges” (assim denominados) e não havia prisão me-
lhor do que a própria mata ou a lavoura de combusta. Obviamente, todos
os dias, muitos desapareciam de bala, doença ou pouca sorte e isso era
um destino bem adequado para aqueles “deserdados de deus.”
Neste início do ano da graça de 2040, João vive escondido no que um
dia foi um Shopping Center. Nas noites escuras (não há mais iluminação
pública) sai pelas ruas para catar algum mantimento, juntamente com
um grupo que com ele vive. A aposentadoria foi suprimida há mais de
dez anos, João nunca a teve. Embora tenha lido no passado que “todos
temos deuses; o que nos diferencia são os motivos que os justificam”, João
imagina ter sido abandonado por eles e sequer consegue rezar por sua
saúde. Ainda existe saúde pública, mas apenas para os que trabalham no
governo, soldados e pregadores.
João também não precisa preocupar-se com tributos. Esses foram
substituídos pelo “Vintésimo” (20% de todos os rendimentos) e pelas “ofer-
tas compulsórias”, que são cobradas mediante a expropriação de bens e
objetos, entendidos como supérfluos, quando flagrados pelos soldados.
Como não era fiel, sem quaisquer bens, e seu “registro geral” fora apaga-
do, João sequer existia oficialmente. Trata-se daquilo que por ora deno-
mina-se de um “não homem”, (inspirada na expressão “não mulher” do
ora proscrito livro O conto da aia). Aliás, só são permitidos livros, canções e
demais manifestações artísticas de caráter religioso e comportamentais;
aqueles que ousam desafiar tal regra são compulsoriamente enviados à
frente de trabalho na floresta ou, se vagas não existirem, para fazendas
de combusta.
Na solidão da escura madrugada, João pensa qual fora ou se havia
um momento em que aquele país, antes denominado “paraíso dos tró-
picos”, houvera se perdido de si; enquanto seu amigo cabeludo, do qual
sabia apenas o nome, ouvia, num pequeno aparelho achado no lixo, uma
velha canção que dizia: “dos meus sonhos o que fiz, procuro não lembrar,
vejo você tão feliz, sem perceber a minha dor, de já não amar”. João pen-
sou que poderia chorar, mas havia esquecido para que isso servia, desde
quando fora condenado à insensibilidade e se tornara invisível para poder
sobreviver.