REVISTA RABISCOS DE CONTOS Revista Rabiscos de Contos IFBA | Page 9

rabiscos de contos Não sabia, mas havia... André Fernandes Amanheceu como qualquer outro dia. Mais uma vez teria que procurar algo que não sabia. Então se levantou. Cabelos loiros, pele clara. Seus olhos verdes perdidos na imensidão de seu vazio. Suas pernas peludas, porém não importava, pois ninguém as tocava. Seu nome? Não lembrava! Afinal, não havia quem o chamasse. Mas naquela manhã acordou diferente. Não havia gosto em sua boca. Então se lembrou que sentia sede. Desceu as escadas. Nos pés, as meias coloridas com as quais dormia todas as noites. Viu uma antiga foto de uma namorada, mas não conseguia lembrar-se da voz dela. Lembrava poucas coisas. Todas elas sem interesse para os outros. Lembrou-se novamente que tinha sede. Então entrou devagar pela cozinha e pegou seu grande copo que ganhou do avô. Bebeu lentamente a água. Não sabia, mas havia matado a sede. Teve fome. Havia dois dias que não comia. Abriu a geladeira. Estava vazia. No armário, encontrou torradas murchas, mas não importava , comeu-as sem prazer. Não sabia, mas havia matado a fome. Ouviu um estranho barulho. Não sabia de onde vinha. Passou pela sala com suas meias coloridas. Abriu todas as gavetas do armário velho, mas não encontrou nada. Tudo cheirava a mofo, mas não se sentia sufocado. Abriu a pequena porta que fica debaixo da escada. Estava escuro, mas não teve medo. Destampou uma velha caixa de madeira e encontrou o que fazia barulho. Um rádio velho. Tocava um som não agradável. Não sabia, mas havia matado a curiosidade. Sentiu de repente falta de sexo. Ligou para uma garota de programa qualquer, que entrou sem ao menos o olhar nos olhos, fez o que tinha de ser feito, tomou banho e foi embora. Ele nada sentiu, apenas acalmou seu desejo animal. Não sabia, mas havia matado o desejo. Teve frio. Vestiu um casaco vermelho velho que cheirava a naftalina, mas não espirrou. Não sabia, mas havia matado o frio. Queria dormir, mas o sono não vinha. Deitou-se, cruzou as pernas, os braços e os dedos, mas o sono não vinha. Lembrou dos remédios velhos que tinha na mochila. Tomou sem fé que funcionária. Nunca acreditou na ciência. Algumas horas depois, dormiu. Não sabia, mas havia se matado. 8