Revista pronta linda amada querida Jul. 2015 | Page 9

O relato fez sucesso entre os russos e, a partir daí, descrever rituais xamânicos tornou-se mania entre os que viajavam pela Sibéria. Alguns retratavam esses homens como trapaceiros capazes de hipnotizar sua plateia, que fingiam se esfaquear enquanto faziam esguichar sangue de uma bexiga animal escondida sob a roupa, e usavam de ventriloquismo para simular conversas com espíritos. Outros os classificavam como psicóticos desvairados, perdidos em um mundo paralelo, criado por suas próprias alucinações e superstições típicas de povos “atrasados”. Não demorou para que o assunto começasse a intrigar os estudiosos, que se perguntavam se aqueles feiticeiros esquisitos eram charlatães ou doentes mentais. Os caras eram, porém, altamente estimados por sua gente, não só por tratar os doentes (sua principal ocupação) e prever o futuro, como por negociar com a própria natureza condições melhores de clima, caça e fertilidade - tudo isso numa das regiões mais geladas e insalubres do planeta. Os xamãs se defendiam dizendo que todos seus dons de cura e vidência vinham dos espíritos - uma multidão deles, em diversas configurações. Alguns eram seus ancestrais; outros, divindades celestiais e entidades subterrâneas. E ainda havia toda espécie de espíritos da natureza: os animais, as plantas, o fogo, a terra, o vento... Da mesma maneira como as doenças eram provocadas por maus espíritos (ao raptarem as almas das pessoas ou possuírem seus corpos), os xamãs aprendiam a combatê-las com espíritos aliados, que os ensinavam as artes do ofício em sua iniciação e, depois, os guiavam e protegiam nas viagens ao além. Nessa crença de que há espíritos em toda parte - não apenas neste mundo, como em outros normalmente invisíveis - e de que eles interferem no destino humano, está a base da religião xamânica, se é que pode ser chamada de religião (outra polêmica viva até hoje). Muitos preferem ver o fenômeno como uma forma de misticismo, por estar centrado em um indivíduo e não em uma instituição organizada. Porém, não falta quem enxergue no xamanismo a raiz pré-histórica de todas as religiões - caso do antropólogo americano Weston La Barre, autor de um célebre ensaio classificando como xamã o patriarca hebreu Moisés. “Todas as divindades clássicas das ·grandes religiões· ainda trazem muitas marcas de suas origens xamânicas - como Zeus, o cósmico criador de chuva da Grécia antiga, acompanhado de sua águia, o mítico Pássaro do Trovão”, afirma ele. Origens Se o xamanismo é, de fato, a fonte comum de todos os cultos e práticas espirituais, isso explicaria uma de suas características mais fascinantes: a de que, em toda parte do planeta, são encontradas práticas e crenças idênticas ou semelhantes às dos xamãs siberianos. A cerimônia de iniciação da machi, a xamã dos índios chilenos mapuche, por exemplo, reproduz um ritual-chave de seus pares asiáticos. Ambos escalam, de tambor na mão, um tronco simbolizando o eixo cósmico que liga o céu, a terra e o submundo, a chamada Árvore da Vida. E essa mesma árvore mítica está presente da Austrália à Índia até as antigas lendas germânicas do deus Odin. Outro elemento que identifica o xamã, seja de onde for, é sua relação com os bichos. A maioria dos espíritos que o orientam e protegem tem forma de animal. Roupas e adereços xamânicos são feitos de peles de animais ou penas de pássaros, para incorporar dons - como o poder de voar. Acredita-se, inclusive, que o xamã pode se transformar em animal - onça na Amazônia, tigre na Malásia, lobo ou urso na Sibéria e em todo o Ártico, águia ou corvo na Ásia e na América, entre outras tantas metamorfoses. Estudiosos concordam que essa simbiose homem-animal era uma característica dominante da cultura de nômades caçadores, como nossos antepassados que saíram da África para povoar o resto do planeta, há 100 mil anos. E ela está bem documentada em pinturas pré-históricas em cavernas espalhadas pelo mundo - há imagens de seres metade homem, metade bicho que datam de 17 mil anos atrás. É impossível saber com certeza o que fazia o homem pré-histórico naquelas galerias úmidas e escuras, mas tudo indica que elas eram centros cerimoniais de ritos xamânicos - fossem para ajudar na caça, buscar estados de êxtase visionário, iniciar jovens na vida adulta ou tudo isso e mais um pouco. As explicações mais aceitas para essas imagens falavam que as pinturas eram a forma encontrada pelos xamãs para adquirir poder sobre as criaturas retratadas ou negociar com os espíritos delas uma aliança para garantir a alimentação de seu povo. Recentemente, porém, uma teoria apoiada em pesquisas neurológicas mudou a interpretação dessas figuras. O arqueólogo David Lewis-Williams, da Universidade Witwatersrand, em Joahnnesburgo, África do Sul, acredita que tais imagens compõem uma espécie de mapa dos estágios atravessados por uma mente em transe. 09