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entrevista e perfil

BOURDAIN É UMA FESTA

Com um apetite insaciável por culturas e cozinhas nativas, o chef se tornou um estadista itinerante

PATRICK RADDEN KEEFE

Quando viaja para o exterior, o presidente dos Estados Unidos leva seu próprio carro. Momentos depois do Air Force One pousar no aeroporto de Hanói em maio de 2016, o presidente Barack Obama se enfiou numa limusine blindada de mais de 5 metros de comprimento conhecida como Besta – um abrigo antibombas disfarçado de Cadillac, equipado com uma conexão segura com o Pentágono e suprimento de sangue. As largas avenidas de Hanói estão coalhadas de carros que buzinam, vendedores ambulantes e uns 5 milhões de scooters e motocicletas que entopem os cruzamentos como uma enchente. Era a primeira viagem de Obama ao Vietnã, mas ele contemplava aquele espetáculo através de um vidro com 5 polegadas de espessura, à prova de balas. Se estivesse assistindo pela televisão, o efeito seria o mesmo.

A agenda de Obama previa um encontro com o presidente Trần Đại Quang e com o novo chefe da Assembleia Nacional do Vietnã. Em sua segunda noite em Hanói, porém, ele teria um compromisso insólito: um jantar com Anthony Bourdain, o peripatético chef que virou escritor, apresentador de Parts Unknown, a série da CNN sobre viagem, premiada com o Emmy ocorrido em dezembro.

Nos últimos quinze anos, Bourdain tem mostrado versões cada vez mais sofisticadas do mesmo programa. Começou com A Cook’s Tour, transmitido pelo Food Network; ao migrar para o Travel Channel, foi rebatizado como Sem Reservas e teve nove temporadas antes de se transferir para a CNN, em 2013. Ele já viajou para quase cem países e filmou 248 episódios, cada um com uma exploração inusitada da comida e da cultura de um lugar. O ingrediente secreto do programa é o entusiasmo do tipo “em Roma como os romanos” com que Bourdain compartilha costumes e cozinhas locais, seja chacoalhando uma garrafa de vodca antes de mergulhá-la num rio congelado nos arredores de São Petersburgo, seja lanceando um porco cevado como convidado de honra numa palhoça comunitária em Bornéu. Em geral ele é fotografado com os maxilares escancarados, prestes a cravar os dentes numa iguaria, qual um grande tubarão branco. Originalmente, pensou em anunciar a série dizendo mais ou menos assim: “Eu viajo ao redor do mundo, devoro tudo o que é porcaria e só faço o que me der na telha.” A fórmula tem se mostrado um sucesso improvávele impressionante.

Com frequência as pessoas perguntam aos produtores do programa se podem acompanhar uma das aventuras do apresentador. Numa visita a Madagascar, ele teve a companhia do diretor de cinema Darren Aronofsky. (Fã do programa, Aronofsky propôs a Bourdain que fossem a algum lugar juntos. “Meio brincando, eu disse Madagascar, só porque é um lugar longe à beça”, o diretor me contou. “E Tony disse: ‘Que tal em novembro?’”) Uma jornada com Bourdain promete uma experiência cada vez mais rara em tempos de turismo homogeneizado: a imersão praticamente na veia em uma cultura estrangeira. Pulando de paraquedas num canto remoto do planeta, Bourdain desencava o restaurante que só os nativos mais descolados conhecem, onde as sardinhas grelhadas ou os pisco sours são divinos. Muitas vezes ele se mete na casa de alguém, onde a comida é melhor ainda. Bom companheiro de garfo, come com disposição e é um conversador imprevisível. “Sua prosa tem um estilo encantador, oscila entre a erudição e a gíria mais deslavada”, observou sua amiga Nigella Lawson. Embora seja um manancial de opiniões francas, ele também escuta com atenção, e talvez a palavra que mais empregue seja “interessante”.

Antes de ficar famoso, Bourdain trabalhou mais de duas décadas como cozinheiro profissional. Em 2000, quando era chef executivo do Les Halles, uma agitada brasserie na Park Avenue South, ele publicou um desbocado livro de memórias, Cozinha Confidencial, que se tornou best-seller. Conhecido por dizer tudo que pensa, envolveu-se em polêmicas públicas com figuras famosas – certa vez atacou Alice Waters por seu ódio fanático à junk food, dizendo que ela lembrava o Khmer Vermelho. identifica como o chef de Nova York, falastrão e de uma franqueza brutal. Com o passar dos anos, porém, ele se transformou num próspero nômade que perambula pelo planeta encontrando gente fascinante e saboreando comidas incríveis. Ele admite que sua carreira é, para muita gente, a profissão dos sonhos. Anos atrás, numa narração em off de um ensolarado episódio na Sardenha, ele perguntou: “O que é que você faz depois que seus sonhos se realizam?” Bourdain poderia ser um sujeito odioso, se não fosse tão adorável. “Por muito tempo Tony achou que não chegaria a lugar nenhum”, me disse seu editor, Dan Halpern. “Ele se acha um cara sortudo. Parece estar sempre feliz por ser realmente Anthony Bourdain.”

O encontro no Vietnã foi sugerido pela Casa Branca. De todos os países em que Bourdain já esteve, o Vietnã, que ele visitou meia dúzia de vezes, talvez seja o seu favorito. Apaixonou-se por Hanói muito antes de conhecê-la, ao ler O Americano Tranquilo, o romance de Graham Greene publicado em 1955. A cidade preserva até hoje uma carregada atmosfera de decadência colonial – palacetes caindo aos pedaços, lúgubres figueiras-de-bengala, nuvens de monções e coquetéis vespertinos – que ele desfruta numa boa. Houve um tempo em que cogitou seriamente morar lá.

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