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CONTO
GOUVEIA | REVISTA MUNICIPAL
NATAL
Natal é somente um dia por ano. É festa de presentes. Acontece que, neste tem-
po de consumismo, não há somente um dia, mas um mês de Natal, para que o
comércio venda mais, o governo arrecade o que não conseguiu durante todo o
ano e as administradoras de cartão de crédito aumentem o assédio aos pobres e
endividados. Deveria ser o dia de Fraternidade Universal, do Humanismo. Como
em Portugal e, de resto, no mundo, o dia da Fraternidade Universal é o 1º de
Janeiro. Por causa das mudanças do calendário, que pouca gente sabe explicar,
é que o ano cristão começa em 25 de dezembro e não no 1º de janeiro, em con-
sonância com o ano civil. Restou conservá-lo no dia considerado do nascimento
de Jesus de Nazaré. Em homenagem à família de José, Maria e Jesus, o Natal é o
Dia da Família.
Consta que Jesus nasceu numa manjedoura e vieram algumas pessoas visitá-lo,
entre as quais os três Reis Magos, mas a tradição não diz de que países eram
eles reis. José estava a ir, com a família, para o recenseamento obrigatório que o
governo realizava em Belém. Era um carpinteiro pobre, não tinha como descansar
numa pousada. Chegando a hora de Maria dar a luz, foi parar numa estrebaria
onde havia burros, jumentos, ovelhas, aves, pássaros e plantações. Só isto já é
suficiente para uma confraternização com a natureza.
E que fazemos nós, hoje, por nossa casa? É tempo de pensar na conservação do
planeta. Também, a não ser um reduzido número de católicos, ninguém se lembra
de Jesus nem visita as igrejas ou as “capelinhas” que outrora se faziam, onde as
pastorinhas cantavam, alegres, pelo nascimento de Deus Menino.
Quem reinventa um presépio? Quem se lembra dos animais? Quem olha o céu,
a estrela, as estrelas? Poucos vão à missa, muitos vão aos shopping-centers
para comprar bugigangas para os filhos, e também para os parentes e ade-
rentes, por ocasião da Ceia de Natal. Produtos importados do oriente, da Chi-
na, principalmente os mais baratos – o que significa que o falso sistema
socialista, instalado lá, age como capitalista, pagando mal aos empregados para
exportar mais barato, fazendo concorrência ao verdadeiro capitalismo – o de cá,
do ocidente, onde o Pai Natal reina soberano – ele, o símbolo perfeito do
capitalismo consumista.
Natal é uma mentira pegada, menos a atmosfera comercial que o rói.
Entrei numa dessas lojas onde se vendem presentes para crianças e fiquei estu-
pefacto. Como “arrumador de palavras”, sensibilidade aguda, senti-me nervo-
so e doente ao ver todo aquele amontoado de bonecas Barbies e personagens
de toda natureza, inclusive os simbólicos como o homem aranha, o lobisomem,
dinossauros, astronautas e não sei mais o quê, tudo empilhado, uns sufocando
os outros. Arrumados nas prateleiras, aos montes, caídos estatelados e
emborcados. O negócio é dar presentes materiais de pouca valia, e recebê-los.
É da praxe.
Todos oferecem e todos recebem um presente. Nada muito alegre. Diante da tevê
ouvem-se músicas atuais e a conversa continua em tom alto, de maneira que
ninguém entenda ninguém, bastando que fiquem com a impressão de que foram
ouvidos. Alguns folheiam velhos álbuns de fotografias ou abrem um vídeo no
computador para lembranças melancólicas do passado ou para mangar dos feios
e das fotos mal feitas – enquanto comem e bebem.
Eis a noite natalina, que começa com as saudações de “Feliz natal e Próspero
ano novo”.
“Mas todos os começos sãos flores!” – diria minha mãe.
O dia seguinte é só para curtir os excessos e a solidão. De tudo sobram algumas
fotos de registo, cartões com dizeres sempre iguais recebidos e, no outro dia,
jogados na cesta, ou o remoer pedaços de frases ditas por alguém, do que não
gostou. Em família há diferenças que nem sempre são caladas, passados os pri-
meiros momentos da chegada à festa.
No começo, a casa estava cheia. Agora está vazia e, muitas vezes, os próprios
corações. Festa de alegria? Nem sempre. Brigas, desgostos, notícias dolorosas de
doença ou morte, tudo pode vir à flor da conversa.
Os egoístas não se incomodam com isto. Os “arrumadores de palavras” é que não
se conformam e ficam a escrever o que sonharam – natais tão diferentes, com
emoção, lirismo e memória. E chegam a inventar símbolos como o do peru, que,
para não ficar triste, morre de véspera.
António Vilela