Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre 9ª edição | Page 119

LiteraLivre nº 9 – Maio/Jun de 2018 micróbios, transmitindo nossa febre maligna. Localizávamos onde estavam eles, nossos inimigos, e íamos chegando, nos misturando, fingindo ser como eles. Aí veio o Natal. O presidente falou, finalmente. Orientado pelos nossos, cancelou o indulto natalino: ninguém sai, bradou aos quatro ventos, aquele asno pomposo. Excelente! Começamos a incitar a boiada. De repente, faltou o leite da mocinha do Nego Cola. Ela protestou e disse que daquele jeito não haveria mais mamada na rola de ninguém. Uma voz mais atrevida gritou que naquele natal tinha pouco leite pra tanta gente ruim. Nego Cola perguntou se aquilo era pra ele. Perguntou de novo. Sua voz de trovão ecoava pelos corredores aflitos. Eram três e dez da matina. As celas foram se abrindo, uma a uma, e a festa começou. Eu não vi, mas disseram que morreram abraçados, o Leiteiro e seu macho. Será que gostavam de verdade daquela coisa de viado? Vi, sim, foram uns quinze caras esporrando no corpo dele, já sem cabeça, no meio da confusão do sangue, dos panos e demais objetos esquecidos em meio ao caos. Mas o jogo terminou empatado. Não podia ser diferente se foi com duas bolas e nenhum juiz. Os de farda não entraram até que tivéssemos terminado o serviço. Então, veio a televisão, as rádios e o diabo, e eu falei; pena que ninguém me reconheceu. Mas ninguém quem? Sou um qualquer, um “ignaro”, como comentou a moça da TV. Ela chegou a me dar um panfleto no qual li algo a respeito de uns tais “impulsos de humana compreensão”. Não entendi, mas vi que amanhecia e que a cor do céu se refletia no corpo de Leiteiro, uma coi sa nem branca nem vermelha; meio rosada, esquisita. Alguém observou, é a aurora, seu idiota, saia daqui. 114