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LiteraLivre n º 6 – novembro de 2017
de desconforto o encontro inesperado com o casal. Problema que se resolve rapidamente frente a nenhuma resistência dos clandestinos em reconhecerem o erro, providenciarem a imediata arrumação de seus poucos objetos e deixarem o apartamento. Todavia, esquecem para trás um porta-retratos, com uma foto dos dois. Walter, sabe-se lá movido por que razão, talvez até para se ver livre das tralhas do dois, vai até a rua para entregar o porta retratos, vê que eles estão ao léu e convida-os a permanecerem no apartamento até conseguirem outro lugar. A partir dessa iniciativa, aparentemente filantrópica, a indiferença e o incômodo de Walter começam a se transformar em empatia. Zainab faz o jantar, e convida Walter a jantar com eles. É cerimoniosa a partilha dos espaços. Tarek já tinha comparecido ao serviço de imigração, pediu o visto de permanência como refugiado e aguarda resposta estando agora na situação de clandestino. Ele ensaiava sua percussão quando é surpreendido por Walter que retorna de mais uma seção do evento. O músico se desculpa por estar tocando e sem calças e Walter lhe diz que não precisa parar de ensaiar, demonstrando que está assegurado a Tarek um território, não só físico, mas também simbólico. Interessa-se pela atividade do músico que como Walter aprecia a música clássica. Uma primeira experiência comum – a música – estabelece aquilo que pode ser chamado de“ união em pontilhado”, uma tênue redução das idiossincrasias. Tarek o convida a pegar um tambor e também experimentar tocar. A princípio receoso Walter arrisca-se a uma percussão, batendo forte, ao que Tarek orienta para que seja mais leve, pois ele“ não está com raiva do instrumento”. Walter esboça um primeiro sorriso. Ele acompanha Tarek numa parceria meio desajeitada e, aos poucos, vai sendo seu companheiro pelas ruas, já se soltando mais, tocando nas praças, carregando nas costas o instrumento, embora ainda de terno e gravata. A relação estabelecida já não é só de generosidade, mas sim de camaradagem. Pode-se reconhecer, entre eles, uma certa familiaridade que torna a vida mais tolerável. Zainab, é ainda muito arredia, intimidada pelo convívio recente com Walter. As diferenças existem e não são ignoradas pelo trio. Sabem-se diversos, a assimetria é marcante, mas agora não apenas se suportam. A alteridade os aproxima num caráter complementar. Tarek e Zainab tem abrigo e um amigo. Walter percebe que o piano pode não ser seu instrumento ideal. Tocar com Tarek está imprimindo mais leveza e cor à sua vida desbotada. Walter batuca o compasso da percussão no carro, quando está na escola, marca com o corpo, numa gestualidade que dispensa o verbal. Já se pode
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