Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre - 6ª edição | Page 114

LiteraLivre nº 6 – novembro de 2017 céu. Porém, nunca lhe deu muitas esperanças. Ela era uma celibatária convicta, não estava interessada em relacionamentos sérios. O céu sofria e, vez em quando, chorava estrelas cadentes. As luzes dos postes abriam os olhos em um despertar em cadeia. Ficavam a perscrutar a vida da vizinhança, sempre a observar tudo. Fofoqueiras! Na janela em frente, um cigarro queimava numa brasa incandescente. No escuro, era tudo que se via. Não queriam sair da escuridão os lábios que o amparavam. Melhor. O cérebro nem quer se esforçar para manter um papo inteligente. Ultimamente, fazia a boca tão somente resmungar contra o jantar frio, o barulho das crianças e o som da tevê alto demais. Melhor deixar o silêncio reinar sobre os ambientes. Mudo que é, não perguntava do encanamento da cozinha, não obrigava a pôr o lixo para fora ou levar o cachorro para passear. Por isso, é o amigo que todos queriam ter. Além de guardar segredo sobre tudo. Não abria o bico por nada! Gatos de rua derrubaram num estrondo uma lata de lixo, rebeldes, não se espantaram com o ralhar das vozes nervosas. Só desistiram do seu intento quando uma sandália voou certeira em sua direção. Num miado forte, reclamaram de sua algoz e abandonaram a lixeira. Um rádio começou a tocar uma melodia triste. Chorava de dor numa língua estrangeira. O ambiente foi tomado por um cheiro de canja delicioso, cujo intento principal era abrir o apetite do estômago. E o corpo, ainda preguiçoso, levantou-se. Gigante desperto pela necessidade básica de comer. Iria em direção ao alimento. De dentro da casa, surgiu uma voz aguda e forte: “o jantar espera sobre a mesa da cozinha”. O homem, faminto, pôs fim a este conto: o estômago a tudo domina. “Quem segue o coração é o pulmão, ninguém mais”, já dizia Carpinejar. Vida que segue. 109