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LiteraLivre nº 6 – novembro de 2017
Prosopopeia
Giordana Bonifácio
Brasília/DF
“Quem segue o coração é o pulmão, ninguém mais”
Carpinejar.
Um fim de tarde febril. Nenhuma nuvem passeava no céu. As árvores não
sentiam uma mínima brisa soprar-lhes entre os galhos. Nas ruas, apenas cães
vadios caminhavam felizes com sua liberdade, apesar de famintos e sedentos.
Um bem-te-vi mentia em gritos agudos na varanda. O relógio da sala
compassado, marcava, um tempo que não se podia reter. Quando badalou as
seis horas, sereno e magnânimo, como os sinos da capela Sistina, o trem
passou, cobra de metal que estalava suas articulações e soltava baforadas de
fumaça que lhe seguiam o caminho. Maritacas barulhentas faziam algazarra
nas árvores da praça, pousando ora em uma mangueira, ora no telhado das
casas próximas.
Aos poucos, “as coisas” iam se assentando, o mundo desacelerava. Os olhos
descansavam no pôr do sol. O coração sentia um tanto assim de melancolia.
Saudades da época em que batia faceiro, sem amarras, tempo em que tudo
era uma aventura. Mas agora, agora nem trota mais, é um músculo
sedentário, só não para de vez porque não quer morrer. Quem seguiria tão
covarde coração?
A rede balançava lânguida, ia de cá para lá, para fazer adormecer. Lá longe,
roupas secavam no varal cheirando a amaciante e sabão em pó, esperavam
estendidas que alguém as recolhesse. Senão, ficavam por lá mesmo. Se
ventasse, pairavam sobre os muros até tombar na terra. Talvez, porque
gostassem de embolarem-se sensuais na máquina de lavar. Calças
enroscavam-se em vestidos sem qualquer pudor. Pervertidas!
O céu ia avermelhando-se, pois amava em segredo a lua. Era só ela chegar
que ele enrubescia, depois trocava de roupa e vestia-se em black tie com um
terno negro coberto de estrelas. A lua, com seu véu de luar, vivia a orbitar no
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