Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre - 6ª edição | Page 113

LiteraLivre nº 6 – novembro de 2017 Prosopopeia Giordana Bonifácio Brasília/DF “Quem segue o coração é o pulmão, ninguém mais” Carpinejar. Um fim de tarde febril. Nenhuma nuvem passeava no céu. As árvores não sentiam uma mínima brisa soprar-lhes entre os galhos. Nas ruas, apenas cães vadios caminhavam felizes com sua liberdade, apesar de famintos e sedentos. Um bem-te-vi mentia em gritos agudos na varanda. O relógio da sala compassado, marcava, um tempo que não se podia reter. Quando badalou as seis horas, sereno e magnânimo, como os sinos da capela Sistina, o trem passou, cobra de metal que estalava suas articulações e soltava baforadas de fumaça que lhe seguiam o caminho. Maritacas barulhentas faziam algazarra nas árvores da praça, pousando ora em uma mangueira, ora no telhado das casas próximas. Aos poucos, “as coisas” iam se assentando, o mundo desacelerava. Os olhos descansavam no pôr do sol. O coração sentia um tanto assim de melancolia. Saudades da época em que batia faceiro, sem amarras, tempo em que tudo era uma aventura. Mas agora, agora nem trota mais, é um músculo sedentário, só não para de vez porque não quer morrer. Quem seguiria tão covarde coração? A rede balançava lânguida, ia de cá para lá, para fazer adormecer. Lá longe, roupas secavam no varal cheirando a amaciante e sabão em pó, esperavam estendidas que alguém as recolhesse. Senão, ficavam por lá mesmo. Se ventasse, pairavam sobre os muros até tombar na terra. Talvez, porque gostassem de embolarem-se sensuais na máquina de lavar. Calças enroscavam-se em vestidos sem qualquer pudor. Pervertidas! O céu ia avermelhando-se, pois amava em segredo a lua. Era só ela chegar que ele enrubescia, depois trocava de roupa e vestia-se em black tie com um terno negro coberto de estrelas. A lua, com seu véu de luar, vivia a orbitar no 108