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LiteraLivre nº 5
- Setembro de 2017
O Segredo
Gabriel Araújo Dos Santos
Campinas/SP
Ali em Nossa Senhora dos Acordados, com a demolição da velha igreja,
todo o mobiliário, quadros e imagens de santos e demais peças sagradas
tiveram acolhida nas casas dos fiéis, até que o novo e espaçoso templo ficasse
pronto.
O esquife do Senhor Morto e dois confessionários foram ajeitados numa
deca- dente casinhola de pau a pique pertinho dali, cujos fundos, de tapumes
improvisados que faziam as vezes das paredes derreadas, davam para um
imenso e sortido pomar, palco de constantes incursões da meninada.
Certa feita eu e Lindolfo, meu colega do grupo escolar, depois de demorada
andança a caçar passarinhos e subir nas árvores, detivemo-nos para descansar
rente aos tapumes da casinhola.
Sem trocar palavra, nos deliciávamos com os frutos cujo sabor não havia
rival no mundo, e o coração batia a mil, tal o receio de sermos apanhados
surrupiando coisas do alheio.
Foi numa dessas vezes que percebemos uma espécie de choro vindo do
interior da casinhola. Um choro manso de mulher, baixinho, entremeado de
queixumes que vez ou outra se viam interrompidos por uma fala que quase
inaudível.
Curiosos, ouvidos atentos - logo concluí, e creio que igualmente meu amigo
Lindolfo - era o vigário atendendo alguém no confessionário colado ao
tapume.
Antes nunca tivesse estado ali e ouvido o que ouvi.
Invadiu-me uma sensação que eu não sabia bem definir: se de decepção
ou de pecado – ou tudo junto -, e passei a carregar um segredo que no meu
entender a ninguém podia ser posto a claro. Nem ao padre, em confissão.
A inocência principiou por morrer em mim...
Era como se eu estivesse sendo expulso do paraíso, o contraditório do
mundo se revelando em toda a sua crueza.
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