Revista LiteraLivre Revista LiteraLivre - 10ª edição | Page 117

LiteraLivre Vl. 2 - nº 10 – Jul/Ago. de 2018 asas se abriam como se fossem aparadores divinos, anjos ocultos, e a pressuposta queda era interrompida por um resgate elástico do voo. O menino prendia a respiração enquanto acompanhava o mergulho de um pássaro, e o seu semblante serenava quando as enormes asas retomavam o voo. Acompanhava um pássaro, dois, três… Ficava ali, embevecido, extasiado, flutuando, até que o pai o trouxesse de volta para o confuso, para o complicado mundo dos incômodos. Aquela cena, revivida todos os dias, fazia parte do mundo de fantasia do menino. Sentia-se um pássaro. Era um pássaro. E um dia voaria. As tentativas foram saindo do chão, os braços já sabiam girar no ar todos os brinquedos. Agora precisava treinar as pernas. Começou pelo sofá, pela cadeira um pouco mais alta, passou para a mesa da cozinha. Em meio aos berros preocupados da mãe, o menino se jogava repetidas vezes de todos os móveis da casa. E não reclamava de dor. Não a sentia. E na cabecinha arrebatada pelo propósito, que talvez nem propósito fosse, o voo persistia. Era foco seleto, visão única daqueles olhinhos bailarinos, teimosos em se fixarem apenas em coisas, em realidade concreta, fugitivos dos olhos de gente. Durante muitas noites, despertava trêmulo pelo sobressalto de uma queda, sentindo falta de chão, sonhos recorrentes. E eles ficavam guardados, não havia como explicá-los, como falar sobre eles, então ele apenas os vivia. E voava sozinho. Era alvorada de um dia qualquer, nada diferente de tantos outros, mas, nesse, o menino não estava na cama, como de costume. Saíra na noite anterior, caminhou pouco até chegar ao sopé do desfiladeiro. Na verdade, ninguém sabe quanto demorou, mas é sabido que chegou ao topo, exatamente no mesmo lugar de onde as aves alçavam voo. E voou… 112